CAPÍTULO X O FIEL DA BALANÇA |
O primeiro passo da resolução da charada é, de longe, o mais importante. Quando se compreende a inevitabilidade da troca dos painéis menores da esquerda, tudo o mais fica determinado: a simetria escondida só pode fazer sentido se conduzir a alguma coisa, e a deslocação virtual do Infante Santo que se processa na imaginação do observador, uma vez efectuada a troca, é imediata.
Das anomalias iniciais, algumas estão ainda por explicar. A dupla vara nas mãos do caminhante e os gémeos do seu painel servem apenas para sublinhar a dualidade dos painéis: a reconciliação à vista de todos num primeiro políptico aparente; a reasserção pedrista e a esperança futura para quem demandar o políptico virtual oculto. Mas para que poderá servir a assimetria introduzida pelo espaço reservado ao molho de cordas? O formato geográfico do reino português (1), que pode estar desenhado no seu contorno interior, apenas reforçaria o significado da figura alegórica nacional, presidindo à cena sobre esse símbolo por excelência da união, retratando o próprio reino, mas por que razão se terá criado uma tão notória assimetria no primeiro plano de um políptico que parece reclamar sucessivas correcções à simetria incompleta inicial apontada pela disposição das figuras? E qual será a função da segunda página de um livro cuja primeira se revelou tão profícua para a aquisição de sentido global de um todo à partida misterioso e confuso?
Recordemos a mensagem que despoletou a compreensão da metade esquerda do políptico, ao colocar o rei D. Afonso V numa posição de humildade paralela à dos simples soldados frente à vara do comando, fornecendo assim a pista crucial para o entendimento dos dois símbolos centrais do políptico e, na sua sequência, do significado dos dois trípticos simetricamente concebidos. Essa mensagem encontrava-se na primeira página do livro e consistia na primeira linha integral de texto escondida pelos dedos da figura central: PATER MAIOR ME EST.
Iniciámos a caminhada com uma descoberta importante: as anomalias servem para gerar simetria, rumo a uma presumível mensagem final. A partir de uma situação de início em que o equilíbrio numérico (30/30) se conjugava com uma assimetria gritante e com numerosas anomalias sugestivas da importância da bilateralidade, obtivemos, através da troca de posição de dois dos painéis, seguida da deslocação virtual de uma figura, uma nova configuração muito mais lógica, mas também um novo problema, uma vez que a simetria introduzida e a resolução das anomalias produzem um desequilíbrio numérico (31/29). Por outras palavras: a lógica do espelho com uma simetria incompleta – que muito habilmente passa mais pelos significados simétricos, pela estética e pelas cores, do que pelo número – cria também a percepção de que o políptico foi concebido como uma balança em equilíbrio.
A situação em que nos encontramos pode ser esquematizada do seguinte modo:
A sensação de que o políptico foi concebido à volta de uma ideia de assimetria inicial conjugada com um equilíbrio numérico, e de que o autor da charada não precisou de nele representar o emblema pessoal do infante D. Pedro, evocativo da uma memória que permeia toda a obra, porque essa marca pessoal está presente na própria concepção da obra, sob forma de uma balança, torna-se ainda mais forte quando se observa o espaço ocupado pela corda e se reflecte sobre a sua possível função.
Antes tínhamos, à esquerda, um espaço reservado por um pseudo-objecto negro e ambíguo que reclamava, como um magnete simbólico, uma figura que se encontrava claramente a mais na organização do lado oposto. Agora, como resultado dessa chamada corroborada por toda a rede de dados lógicos, simbólicos e estéticos, temos, do lado esquerdo, uma figura em excesso – uma vez que se gerou um desequilíbrio numérico que tem de ser corrigido – mas desconhecemos de qual das 31 se trata. Tudo o que podemos dizer é que resta em todo o políptico um único espaço livre que parece reservado por uma corda com nós simbolizando a união, que esse espaço se situa à direita, e que a solução deve, de alguma forma, encontrar uma estabilidade que faça sentido.
Os precedentes fortes têm – assim o esperamos – a virtude de abrir caminho à subtileza relutante: uma nova deslocação virtual de uma figura, que colocasse D. Afonso V sobre a corda da união, ao lado do seu filho que o aguarda sob a coroa da Esperança Futura, insinua-se por si própria, se atendermos à conotação das suas cores verde e roxa, e à evolução das relações entre o rei português e a duquesa de Borgonha sua tia, nos anos que se seguiram à tragédia de Alfarrobeira, mas de que modo poderia o novo movimento resolver a charada? O equilíbrio numérico restabelecido arrastaria a completa desorganização do painel abandonado pela figura do rei, onde apenas ficariam como figuras principais os reis defuntos e o jovem herdeiro da coroa, retratado na adolescência e isolado num painel de figuras reais tutelares desaparecidas. Mas, por outro lado, para que poderia servir a charada se não tivesse alguma conclusão satisfatória, digna da elegância dos primeiros passos que apontam a existência de uma mensagem subtil?
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A pista a seguir para ultrapassar o novo impasse encontra-se mais uma vez no livro central. As perplexidades iniciais conduziram-nos a ler a linha escondida da sua primeira página: PATER MAIOR ME EST. A mensagem da segunda página está igualmente oculta, e deve ser encontrada do seguinte modo: assim como a pista inicial mencionava o PAI e o FILHO, assim a sua continuação surge através da invocação da terceira pessoa que falta. Com efeito, e como por milagre, não só o trecho que se adivinha através das palavras visíveis da segunda página pertence a um curto Prefácio da Missa do ESPÍRITO SANTO (transcrito em latim no cap. III), como ainda contém uma única referência à terceira pessoa da Divindade (spm sanctum) que ocupa exactamente uma mudança de linha.
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Para melhor compreensão, reproduzimos à esquerda os fragmentos de linhas relevantes da segunda página, e à direita as linhas completas e suas quebras, reconstituídas a partir da zona visível, com abreviaturas por extenso e pontuação e maiúsculas modernizadas. Para completo entendimento de certos pormenores subtis que no último capítulo serão considerados, recomendamos ao leitor que procure ir-se familiarizando com o aspecto dos caracteres góticos da pintura.
A referência única ao Espírito Santo fica visível na passagem da quinta para a sexta linha, podendo ler-se, no fim da quinta, a abreviatura spm (de spiritum). A linha seguinte, visível como todas as outras apenas pelas suas últimas palavras, fica portanto bem determinada desde o início (sanctum) até ao final (filios), e consiste no seguinte: SANCTUM (HODIERNA DIE) IN FILIOS. Note-se o sinal «:» que finaliza a linha na pintura, indicativo de pausa e uma possível forma de sublinhar o fim da mensagem, uma vez que não faz sentido separar a expressão «filios adoptionis» (filhos da adopção) e a mudança de linha não divide qualquer palavra.
O aparecimento na linha significante, apontada pela referência ao Espírito Santo, de palavras que referem «o filho» e «o tempo presente», parece conciliar-se bem com o sentido que procuramos. Para além disso, no texto do referido Prefácio (2) ocorre uma particularidade, e a linha do livro em que ela ocorre é justamente a que isolámos. Reside no facto de as palavras «hodierna die» não serem fixas, uma vez que constam do Prefácio mas não são lidas nas missas votivas. A escolha de uma linha em que a referência aos dias hodiernos está como que sublinhada pelo seu carácter variável, adapta-se com felicidade ao sentido que prevíamos.
A sugestão que nos é feita para resolução da charada através de duas linhas completas, uma de cada uma das duas primeiras páginas, é pois a seguinte: PATER MAIOR ME EST / SANCTUM (HODIERNA DIE) IN FILIOS. |
Já antes referimos a polivalência da mensagem da primeira página que indica, logo de início, a subordinação dos reis a Deus, quando descrevemos a forma como D. Afonso V pode igualmente ser visto como alvo de uma repreensão por parte da figura alegórica central – cuja expressão sombria no painel dos reis anterior ao restauro de 1909 parece confirmar essa hipótese. Referimos igualmente que o príncipe João chegou a figurar, no desenho preparatório, sob o abraço protector de D. Duarte, uma posição extraordinariamente invulgar, senão mesmo única em retratos de figuras de calibre real do séc. XV e – sejam quais forem as identificações que se aceitem – certamente muito reveladora de um desejo de colocação do jovem adolescente sob a égide directa da figura de chapeirão, desejo esse misteriosamente atenuado na versão final da pintura.
O significado das duas primeiras páginas do livro fica agora muito mais claro: D. Afonso V é de facto repreendido, mas aceite nos dias de hoje, através da legitimidade que o seu pai D. Duarte (representado no acto de abraçar o herdeiro da coroa, num primeiro projecto demasiado transparente e por isso mesmo cancelado) e o seu filho, epígono simultâneo de D. Duarte e D. Pedro, e de D. João I através deles, lhe conferem. A implicação de que no passado teria sido diferente mostra os novos tempos de reconciliação nacional em torno do rei, e salienta a perspectiva pedrista dos autores da charada. As palavras «hodierna die» indicam como se pode finalmente atingir o políptico virtual, feito de ideias e sugestões: o que os dias hodiernos querem dizer é que o painel do passado – onde só ficam os defuntos, porque o príncipe João se encontra já do outro lado do espelho à espera do seu pai – faz parte do equacionamento da charada, mas não da sua solução que aponta os tempos futuros. |
Observe-se a forma como o sentido do tempo é indicado nos dois painéis centrais, acompanhando a ideia de esperança no futuro que preside ao todo:
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Com a aceitação de D. Afonso V – que abandona o painel do passado, onde vergava o joelho debaixo do olhar imperioso de sua mãe – e o encerramento dos conflitos antigos, fica resolvida a charada e completado o Políptico da Esperança, cujo número de painéis é o que preside às quinas portuguesas, e cujo painel central aponta o futuro, como o painel dos reis falecidos apontou o passado no primeiro políptico de todas as ambiguidades:
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É esta a solução da charada, uma vez que a simetria inteligível é preservada e a estabilidade dos dois lados é forçada pelo número ímpar de painéis, como numa balança travada após os passos instáveis da pesagem. Mas para continuar a permitir a retirada de quem não goste, semeiam-se mais algumas desculpas 📜: a vara de comando não aponta exactamente para o centro rigoroso da pedra verde e a dalmática do lado esquerdo contém, se procurarmos exaustivamente, três únicas pequenas flores desabrochadas (mas a da direita contém todo um jardim que não é preciso procurar).
Caberá a quem aceitou sugestões aparentemente tão estranhas como a da primeira transformação do políptico que contrariava as linhas do chão, determinar se a quina portuguesa patente no posicionamento das cinco figuras que rodeavam o Príncipe Perfeito em cada um dos painéis centrais, no início do percurso, poderá servir de modelo para os cinco painéis do Políptico da Esperança, no seu término. Talvez a noção de que o mundo dos arquétipos platónicos possa ocupar uma posição autónoma superior à das existências terrenas, mesmo quando exemplares, encontre os seus adeptos, e uma outra disposição virtual se insinue por si própria. Mas ainda que assim não aconteça, o Políptico da Esperança, na sua sombra terrena, perdurará e será redescoberto tantas vezes quantas for esquecido, enquanto durar a memória dos Painéis de S. Vicente de Fora.
O leitor activo, exausto por tantas maravilhas inesperadas, observará que uma anomalia persiste: se todos os dados se reforçam e os ilogismos mais chocantes se integram na resolução, se tudo converge no Políptico da Esperança e através dele se explica, se o problema está resolvido, se a extensão do entendimento dos painéis das Janelas Verdes está atingida, para que serve uma terceira página de um livro que já cumpriu a sua missão?
Serve, conforme veremos, para confirmar que o políptico virtual não existiu apenas na mente de quem o demandou, mas também na de quem o concebeu. E serve ainda 📜 para não deixar morrer o coração da charada.
A balança pedrista que a duquesa de Borgonha enviou a D. Afonso V, disfarçada numa estranha pintura executada em meados dos anos sessenta, não transporta apenas a sua reconciliação e ajuste de contas com o rei de Portugal, e a reunião familiar que este pode ter desejado com os seus pais, mulher, filho e tios ilustres, em torno de um santo difícil de identificar (mas com o seu tio favorito, o infante D. Henrique, rezando pelos irmãos de forma tranquilizante, como o monge prostrado que lhe é simétrico na disposição inicial reza pelas figuras enredadas). Transporta também a mensagem de Isabel para a posteridade, a homenagem ao seu irmão Pedro, e o seu voto de esperança no futuro D. João II e todos nós, devidamente assinado em duas botas direitas e autenticado pela terceira página do livro central, conforme veremos. |
1) Stricto sensu, ou seja, sem o prolongamento dos Algarves, conforme se delimitava o velho reino de Portugal.
2) O texto em português do Prefácio da Missa do Espírito Santo é o seguinte (Lefebvre, Missal, 1958):
«É verdadeiramente digno e justo, necessário e salutar que sempre e em toda a parte Vos demos graça, Senhor, Pai santo, Deus omnipotente e eterno, por Jesus Cristo nosso Senhor, o qual, subindo acima de todos os céus e sentando-se à vossa direita, (neste dia)* derramou sobre os filhos da adopção o Espírito Santo que havia prometido. Por isso, numa efusão de regozijo, em todo o orbe da terra exulta o mundo inteiro; e as próprias Virtudes celestes e Potestades angélicas cantam um hino à vossa glória, repetindo sem fim: Santo, etc. (continua como no Prefácio Comum que se diz quando a Missa não o tem próprio)».«* Nas missas votivas omite-se neste dia».