CAPÍTULO V

A LÓGICA DO ESPELHO COMPLETO

FraPesInfArcCavRel

Políptico após a troca de Frades e Pescadores
PRIMEIRO PASSO DA RESOLUÇÃO DA CHARADA
TROCA DOS PAINÉIS DOS FRADES E DOS PESCADORES

A partir da troca de posição dos painéis dos Frades e dos Pescadores estabelece-se uma simetria muito mais satisfatória dos pontos de vista simbólico, cromático e geométrico, explicando-se a razão de ser das grandes anomalias de composição geral, como a iluminação contraditória e a assimetria periférica. Igualmente explicados ficarão, como iremos salientando, os mistérios e ambiguidades que atrás enumerámos como anomalias locais.

A anomalia na iluminação existe simplesmente para nos fazer reflectir sobre a posição relativa dos painéis dos Frades e dos Pescadores. Explica-se como uma pista intencional, já que com a nova disposição o carácter contraditório desaparece: nada impede que uma primeira fonte de luz ilumine a partir da direita cinco dos painéis, e uma segunda fonte ilumine a partir da esquerda unicamente o painel dos Pescadores.

A falta de simetria periférica, tão claramente oposta à sugestão do espelho central composto por reis e soldados, explica-se, por sua vez, como a mais importante das fontes de perplexidade que suscitam a interrogação. A nova disposição, com efeito, cria uma simetria extremamente potente, não só em termos de explicação das inúmeras anomalias menores – impossíveis de explicar através da disposição inicial que segue as lajes do chão – mas também através de uma aquisição de sentido global e profundo, para um todo irremediavelmente confuso e absurdo na pobreza da sua disposição inicial.

Pater maior me est A mensagem que, conjugada com a troca dos painéis, despoleta a compreensão da metade esquerda do políptico, estabelecendo um notável paralelismo simbólico entre os dois objectos situados ao centro dos painéis maiores e a forma como se relacionam com as figuras que os cercam, encontra-se na primeira página do livro. Consiste na primeira linha integral de texto escondida pelos dedos da figura central: PATER MAIOR ME EST.

Vejamos de que forma a simples troca dos dois painéis e a leitura da linha tão deliberadamente escondida geram um equilíbrio lógico e estético para o conjunto do políptico.


SIMETRIA SIMBÓLICA

Simetria simbólica

A simetria simbólica pode ser resumida do seguinte modo: o políptico fica composto por dois trípticos simétricos correspondentes aos dois lados do espelho. Em ambos os trípticos o percurso do centro para a periferia pode ser descrito como:

  1. SÍMBOLOS CENTRAIS que condensam o significado de cada um dos trípticos: VARA DE COMANDO de um lado; livro sagrado do outro, lembrando através das palavras «PATER MAIOR ME EST» a subordinação de todos os reis temporais a Deus.
     
  2. AGENTES HUMANOS do simbolismo central: figuras de cavaleiros representando o comando temporal do lado da vara, no painel intermédio da direita; frades em oração representando a piedade e humildade espiritual do lado do livro, no painel intermédio da esquerda.
     
  3. CENAS ALEGÓRICAS representando, como veremos, a ideia central patente em cada um dos trípticos: o COMANDO VIRTUOSO à direita, a HUMILDE PIEDADE à esquerda (1).

Representando num quadro os significados paralelos de cada um dos trípticos do políptico transformado:

TRÍPTICO ESPIRITUAL TRÍPTICO TEMPORAL
ALEGORIA
DA
HUMILDE
PIEDADE
OS QUE
REZAM

(Frades)
«PATER
MAIOR ME
EST»
(Reis)
VARA
DE
COMANDO
(Soldados)
OS QUE
COMANDAM

(Cavaleiros)
ALEGORIA
DO
COMANDO
VIRTUOSO

As palavras são simples convenções, fracos símbolos familiares para tentar transmitir o que as cenas alegóricas e as figuras emblemáticas representariam para a mente que as concebeu, há mais de quinhentos anos. Poderíamos, por exemplo, chamar aos dois painéis dos extremos simplesmente Alegoria da Virtude Temporal e Alegoria da Virtude Espiritual, na óptica específica das figuras poderosas que presumivelmente doaram ou receberam a obra. Mas mais importante que a escolha das palavras, é a compreensão do significado profundo das duas metades do políptico: o tríptico temporal recorda a virtude no comando ao príncipe a quem se destina; o tríptico espiritual indica-lhe a atitude de humildade piedosa que a deve acompanhar.

A simetria simbólica gerada nos painéis centrais e prolongada aos intermédios é, se atendermos ao que ficou dito, facilmente completável através do significado dos painéis exteriores:

TRÍPTICO ESPIRITUAL TRÍPTICO TEMPORAL
CENTRAIS Figuras de reis em torno de uma mensagem de humildade Humildes soldados anónimos em torno do símbolo de comando
INTERMÉDIOS Os que rezam: frades representando o exemplo piedoso Os que comandam: cavaleiros representando exemplos de comando
EXTERIORES Alegoria: a Humilde Piedade e a rede da Salvação Alegoria: o Comando Virtuoso (o Sacrifício, o Rigor, a Penitência)

Torna-se pois necessário completar os dois itinerários com a explicação detalhada das duas cenas alegóricas que nos painéis exteriores enquadram o novo políptico. Uma importante constatação, que deve novamente ser sublinhada, é a de que tanto o painel da Relíquia como o dos Pescadores, apresentam, ao contrário dos restantes painéis, características que apontam fortemente no sentido da alegoria:

A interpretação das várias figuras presentes nos painéis alegóricos é a seguinte (o leitor poderá tentar outras palavras: são as ideias que contam e não a maior ou menor habilidade com que se tenta expressar conceitos do séc. XV no nosso tempo):

  1) A PIEDADE  (FIGURA CASTANHA)   OS PEIXES NA SUA REDE  (FIGURAS VERDES)  

A Piedade O seu pescado A Piedade humilde que salva as almas é representada por uma figura de frade em extrema prostração (Pater maior me est) orando com expressão intensa e olhos avermelhados, e contando, com a sua fiada de vértebras, os peixes na rede da Salvação. Um único «pescador», portanto, mas três peixes igualmente simbólicos e de verde vestidos. E todos no seu lugar: um pescador fora, três peixes dentro da rede, no painel que com mais propriedade se poderia chamar «do Pescador» que «dos Pescadores»...

O simbolismo do verde comum às três figuras abrangidas pela rede torna-se evidente, e a necessidade de o dissimular fica confirmada: se o pintor tivesse desejado uma cena mais imediatamente compreensível e menos discutível, não teria disfarçado o pequeno triângulo que mostra subtilmente que todas as figuras dentro da rede envergam o verde da Esperança. As figuras na rede da Salvação, envergando a cor da esperança de bem-aventurança e vida eterna, parecem, de resto, mostrar que ela é comum a todas as classes sociais: a primeira mostra uma toga brilhante e sedosa, a segunda uma espécie de cobertor baço e áspero (note-se a preocupação, única ao longo de todo o políptico, de traduzir graficamente a aspereza do tecido), e a terceira é um simples descamisado colocado no friso dos figurantes, salientando-se assim o seu posicionamento mais humilde. No entanto, todas as três cabem na rede, mostrando a coincidência do seu englobamento com a cor verde que envergam.

O significado do painel alegórico do tríptico espiritual é portanto transmitido através da figura exemplar da Piedade e da imagem bem cristã da «Pesca», e a importância simbólica das cores emerge aqui pela primeira vez: castanho representa humildade, verde representa esperança e vida.

  2) O SACRIFÍCIO  (FIGURA VERMELHA)  

O Sacrifício

O seu exemplo O Sacrifício é representado por uma figura sugestiva de amor e santidade (sem auréola, já que se trata, na sua leitura alegórica, de uma representação exemplar de virtudes cardinais, à semelhança das suas congéneres, e não da figura de um santo), com expressão serena e cabelo branco (sabedoria), mostrando uma relíquia sobre um pano verde. A relíquia – que não parece reproduzir uma parte anatómica real porque poderá ter sido pintada de memória (se inspirada num fragmento humano realmente existente) ou até de forma inteiramente imaginária (2) – lembra o exemplo dos santos, e o pano verde, a esperança de o poder seguir. A significação do verde, que é a única cor viva presente nas figuras do painel alegórico da Piedade colocado do lado oposto, é confirmada como cor da Esperança no painel alegórico do Comando Virtuoso, e o vermelho – que é, por sua vez, a única cor viva presente nas figuras deste último – não pode deixar de ser igualmente significativo: é a cor tradicional do sacrifício e do amor (sangue dos santos mártires, línguas de fogo dos apóstolos).

A figura vermelha torna-se assim coerente e compreensível, e o elemento de cor verde por ela apontado na direcção do observador destina-se a confirmar o crucial significado dessa cor no painel da Piedade, como se o autor da charada optasse por apoiar os que avançam na sua decifração, confirmando cada descoberta sucessiva que introduz sentido e moralidade num todo aparentemente confuso e desprovido de ambas as coisas à partida.

  3) O RIGOR  (FIGURA NEGRA)  

O Rigor A sua face (pré-restauro) O Rigor é representado por uma figura de judeu, de expressão severa, exibindo um livro que simboliza a Lei Antiga, ou seja, a dureza e integridade dos juizes e comandantes do velho testamento. As anotações marginais do livro (sugestivas do comentário talmúdico à Lei), o sentido em que a página é voltada, o sinal localizado na boca do estômago, confirmam, como já vimos, a interpretação judaica.

Note-se que, embora a imagem do judeu represente uma virtude exemplar (temperada pelas outras duas sugestões alegóricas de inspiração cristã do mesmo painel), o pseudo-hebraico do seu livro não é legível porque, se o fosse, nos desviaria da importância do outro livro que, esse sim, está lá para ser lido. No caso da figura de inspiração judaica, apenas se pretende apontar ao comandante e juíz temporal o exemplo bíblico, a escritura pré-evangélica em bloco, onde a mente medieval encontrava os modelos de força e rigor necessários a quem competia comandar e julgar com justiça.

Um importante elemento de confirmação do judeu como representação alegórica do Rigor é a sua expressão de dureza, bem visível na fotografia anterior ao restauro de 1909, que a alterou sensivelmente (3).

  4) A PENITÊNCIA  (FIGURA CASTANHA)  

A Penitência O seu fardo e caminho Tal como o humilde monge prostrado da alegoria da Humilde Piedade, a figura alegórica que transporta às costas a misteriosa caixa vazia e representa a Penitência, enverga, também ela, o castanho como cor emblemática. O aspecto do pobre caminhante, de olhar cansado e barba por fazer, não deveria deixar dúvidas quanto à intenção moral da figura. Tentar explicá-la sem o compreender, tentar identificá-la – ao lado de determinado judeu da Sinagoga histórica, ou de determinado vereador da câmara – como uma personalidade com identidade precisa, é, mais uma vez, sacrificar o óbvio ao convoluto.

O delírio imaginativo consiste em interpretar figuras em situações irreais e rodeadas de elementos fabulosos como retratos fiéis e realistas em contextos triviais. E, tal como a relíquia possivelmente inexistente e o livro ilegível, também o objecto que a figura da Penitência carrega pertence ao mundo da moralidade alegórica. É exactamente aquilo que parece ser: uma caixa demasiado estreita para caixão, demasiado comprida para o simples transporte de ossadas, e visivelmente artificiosa, tanto através das tábuas do seu fundo que criam uma ilusão de degraus ascendentes, como das tábuas laterais que se prolongam para além da tábua de topo.

O que uma caixa vazia representa é simplesmente uma carga que já não pesa, um aligeiramento do fardo temporal na caminhada sugerida pelos bordões e pelos degraus que apontam o sentido ascensional da purificação através da penitência e da humildade. E o que as tábuas laterais que se prolongam verticalmente para além do topo da caixa significam não é mais do que o reforço desse mesmo simbolismo ascensional.

A moralidade da figura – patente no seu aspecto e na sua expressão – transporta uma mensagem para os que exercem o poder e são sujeitos às tentações do orgulho e da vaidade: o penitente é o complemento do juiz rigoroso que exibe a Lei, é a forma evangélica de vencer os efeitos do exercício desse poder.

Seguir o exemplo de sacrifício dos santos, comandar e julgar com rigor, lavar através da humildade penitente as máculas decorrentes do fardo temporal – eis aqui a moralidade exemplar do painel alegórico do Comando Virtuoso, representada pelas suas três figuras. É este o modelo de comportamento proposto pelo autor do políptico aos poderosos do seu tempo a quem ele se destinou.

Quanto ao simbolismo das cores, emerge de um painel alegórico como do outro: o castanho simboliza humildade em ambos e, tal como o verde da Esperança nos era explicado na alegoria espiritual, o vermelho – única cor viva da alegoria temporal – simboliza o Sacrifício.


SIMETRIA CROMÁTICA

Simetria cromática

As cores e o seu significado são uma chave importante da charada global, e a sua distribuição esquemática nos quatro painéis menores tornou-se muito mais inteligível a partir do momento em que procedemos à troca dos painéis:

       

PAINÉIS EXTERIORES: Já vimos de que forma os dois painéis exteriores condensam simetricamente a explicação das duas cores essenciais do políptico (verde e vermelho), a par do significado das cenas alegóricas. Nestes painéis, o autor da charada fornece-nos não só as chaves para a compreensão simbólica dos dois trípticos e respectivos símbolos centrais (o livro com a sua mensagem de Piedade e a vara do Comando), como também a descodificação essencial das cores através das quais irá caracterizar as figuras de reis, cavaleiros e soldados ao longo de todo o políptico, com a intenção que adiante se verá.

PAINÉIS INTERMÉDIOS: Nos painéis intermédios, as figuras de frades e cavaleiros apresentam também elas uma subtil simetria cromática. À esquerda, menos importantes, as cores neutras – à excepção do negro – isoladas no friso das figuras secundárias (cinzenta, castanha, parda); à direita, verdadeiras chaves para a resolução da charada, as cores vivas – acrescidas do negro – isoladas nas figuras principais (verde, vermelha, roxa, negra). De ambos os lados, o branco para preencher as restantes posições: os três frades principais à esquerda, os quatro figurantes clericais à direita e, independentemente das diferenças de tonalidade que os hábitos brancos dos frades apresentam – adiante explicaremos o seu significado – a sua cor, representativa da pureza, parece apropriada.

A simetria da cor nos quatro painéis menores, resume-se assim: do lado espiritual, o verde como cor focal e as cores neutras (menos o negro que falta) como símbolos de despojamento e ascese; do lado temporal, o vermelho como foco e as três cores vivas (acompanhadas do negro que está a mais) como caracterização de figuras históricas, que assim ficam referenciadas de forma que adiante veremos surpreendentemente confirmada por inúmeras outras pistas.

Para que no espírito do leitor a percepção das pistas se vá tornando mais eficaz, sugerimos o seguinte exercício: imagine-se no espaço negro do painel dos Frades, uma qualquer figura vestida da cor desse mesmo espaço (o negro que falta no painel das cores neutras), e imagine-se simultaneamente a ausência da figura negra do painel dos Cavaleiros (a cor que está a mais no painel das cores vivas). O resultado seria de tal forma claro, através da simetria entre as sete figuras que ficariam de cada lado, e entre as suas cores e as suas atitudes, que a correspondência dos painéis dos Frades e dos Cavaleiros seria imediata. Aqui fica a pista para que o leitor comece a suspeitar as funções complementares de um espaço ambíguo que cria a sensação de vazio e de um estranho cavaleiro voltado numa direcção contrária à dos seus companheiros.

Antes de atingirmos o passo seguinte da resolução da charada, porém, será necessário consolidar as pistas avistadas e identificar os quatro cavaleiros, facilmente reconhecíveis pelos seus familiares a quem a pintura se destinou, mas não pelo observador moderno que apenas se pode basear na própria lógica interna do políptico para saber quem é quem.


SIMETRIA GEOMÉTRICA

Simetria geométrica

Por «simetria geométrica» pretendemos referir a correspondência das figuras de cada tríptico lateral através das suas posições e orientações (i. e. sentido em que se voltam).

Os dois painéis centrais fornecem, como vimos, um exemplo perfeito de simetria, através das suas doze figuras principais. Os quatro laterais, totalmente assimétricos na sua disposição inicial, tornam-se, depois da troca de dois deles, muito mais compreensíveis no seu novo emparelhamento.

Nos dois painéis alegóricos gera-se uma correspondência de posição e orientação entre a figura castanha prostrada e a figura vermelha ajoelhada (ambas voltadas para dentro), e igualmente entre o par de figuras principais da rede (uma voltada para dentro, outra para fora) e o par composto pelo judeu e pelo homem da caixa vazia que assumem orientações similares.

A sensação de simetria geométrica dos painéis exteriores enquadrando o espelho central composto pelos dois painéis maiores, resulta evidente, e apenas fica por examinar a correspondência de frades e cavaleiros nos painéis intermédios. Se apenas os três primeiros cavaleiros forem considerados, a simetria é mais uma vez obtida: três frades voltados para dentro acompanham os cavaleiros igualmente voltados para as cenas centrais do políptico.

Fica apenas, e novamente, por explicar o cavaleiro de negro (inequivocamente integrado no grupo principal do seu painel, em oposição aos figurantes idênticos entre si que ocupam o último plano):

  1. É a quarta figura principal do painel que tem uma a mais (três para cada um dos outros painéis menores).

  2. É o único dos quatro voltado para fora.

  3. A sua cor é a que falta no painel das cores neutras, e o lugar dessa cor é a mais notória ambiguidade dos painéis.

Se acrescentarmos que o preenchimento desse espaço vazio teria a virtude de tornar completamente simétricos os frisos de figuras secundárias dos dois painéis intermédios – com quatro rostos cada um – não deixaremos muito mais à imaginação do leitor.

Para total compreensão do que deve ser feito no segundo passo da transformação do políptico, apenas faltaria atribuir uma significação simbólica à deslocação virtual que se prepara. Completadas as simetrias geométrica e cromática, também a simetria simbólica poderia assim vir reforçar uma concepção ousada mas incontornável. As questões a colocar seriam então a da identidade do cavaleiro de negro e a do sentido da sua deslocação virtual desde o painel onde figuram os exemplos do comando temporal para o seio do tríptico espiritual.

A identificação do cavaleiro como um dos tios do rei – o infante D. Fernando, que ao lado do seu irmão Henrique comandou as forças portuguesas que acometeram desastrosamente Tânger, em 1437 – concordaria com o significado simbólico global: falecido no cadafalso inimigo, santificado pela tradição popular – embora nunca canonizado oficialmente – o Infante Santo parece ser o exemplo vivo de um percurso, das glórias militares para a santificação pelo martírio (ou, na imagem do políptico, do painel dos comandantes temporais para o painel dos santos homens). É esse o tom da narrativa de Frei João Álvares, seu secretário, que o acompanhou no cativeiro e descreveu os seus últimos dias no seu Tratado da Vida e Feitos do Muito Virtuoso Senhor Infante D. Fernando (4).

A consolidação das soluções que progressivamente surgem não pode, no entanto, ser feita através de simples palpites, mas do acumular paciente de todas as pistas que o autor intencionalmente introduziu na sua obra (e de outras que, sem que o pudesse saber, ficam hoje acessíveis através do desenho subjacente que permite reconstituir a génese das ideias expressas na superfície da pintura): a identidade do infante D. Fernando, o mais jovem dos quatro tios do rei, e a razão de ser do seu posicionamento e estranha orientação, contrária à dos restantes, serão muito mais aparentes quando abordarmos as numerosas anomalias do painel dos Cavaleiros e identificarmos as três outras figuras principais.


NOTAS

1)  Note-se que a esquerda do observador (a direita do ponto de vista da pintura) é sempre o lugar mais honroso.

2)  Segundo uma tese que tem ganho aceitação desde que foi apresentada por Teresa Schedel de Castello Branco (1994), a figura de vermelho representaria um vereador da câmara de Lisboa, por então sediada na Casa de Santo António, e o objecto que exibe seria, conforme tinha pretendido Belard da Fonseca, a relíquia desse santo que o infante D. Pedro trouxera de Pádua e oferecera à dita Casa, em 1428, no regresso do seu périplo europeu. As razões por que consideramos essa interpretação pouco segura, apesar de ela se poder revelar tentadora para a tese que aqui procuramos apresentar, são as que passamos a expor.

A identificação do vereador baseia-se exclusivamente na cor vermelha das suas vestes, extrapolada como oficial ou habitual a partir da descrição de um único evento de natureza cavaleiresca (um torneio) no diário de viagem de Nicolau Lanckman de Valckenstein, enviado do imperador Frederico III à celebração dos esponsais com D. Leonor, irmã de D. Afonso V, em 1451 (cf. edição bilingue de Aires A. Nascimento, 1992, pág. 47):

«Às duas horas depois do meio-dia, vieram seis cavaleiros, esplendidamente bem equipados, da governação da cidade de Lisboa: seguiam-nos toda a governação e os anciãos. Estavam todos muito esplendidamente vestidos, numa só cor de vermelho escarlate. Os cavaleiros, pelo seu arauto, lançaram um repto: se havia homens da terra ou estrangeiros, de qualquer condição ou estado que quisessem bater-se em torneios ou outros actos cavaleirescos, viessem equipados naquela hora e àquela praça. Imediatamente, vieram outros cavaleiros do paço do rei e da rainha e muitos estrangeiros e homens da terra, muito engalanados, fazendo-lhes frente, destemidamente. Ao vencedor eram atribuídas duas pedras preciosas, encastoadas em ouro».

O que o diarista alemão está a descrever são portanto os preliminares de um torneio integrado em festividades feéricas, ao longo de quase duas semanas, em que se sucedem as mais variadas e dispendiosas encenações fantasistas, com torneios, jogos, banquetes, cortejos e espectáculos públicos, em que os participantes, quer em intervenções de cariz cavaleiresco, quer em desfiles populares ou alegóricos, adoptavam indumentárias apropriadas e compareciam, actuavam ou se defrontavam em grupos identificáveis para a ocasião. Por exemplo (pág. 33):

«Depois veio o infante D. Fernando [irmão de D. Afonso V], com a sua corte, muito engalanada todos numa só cor, bem vestidos; trazia uma carta na mão, anunciando a sua chegada com seu exército, para tomar parte nesta festa nupcial».

Note-se que librés senhoriais monocromáticas eram muito pouco comuns, e tudo indica que a cor única da «corte» do irmão do rei tinha sido especificamente adoptada para a ocasião festiva. Ou ainda (pág. 41):

«Em seguida chegou o sereníssimo senhor rei de Portugal (...) Seguiam-no seis pagens em cavalos belíssimos; esses jovens estavam vestidos de ouro e prata, e gemas com toda a gala».

Obviamente, onde não existiam librés senhoriais ou emblemáticas de corporações, convencionavam-se outras tantas apresentações de grupo a condizer com o luxo e fantasia das festividades, e não há qualquer outra ligação, anterior ou posterior, da cor vermelha ao município de Lisboa. Pelo contrário, como a própria autora da tese reconhece (pág. 98): «sabemos que no século XVII os homens da câmara trajavam de preto e branco» (as cores emblemáticas da cidade que se mantêm até hoje, com origem provável nos corvos da antiga lenda de S. Vicente). Se considerarmos a grande invariância característica dos símbolos municipais a partir das datas da sua adopção oficial, a conclusão que se nos afigura mais provável é a de que ainda não existissem cores reconhecíveis de alguma libré camarária de Lisboa, e que não há razões suficientes para estendermos uma convenção de tipo teatral adoptada durante um único episódio festivo de 1451 – que parece não ter deixado sinais visíveis de continuidade nos anais do município – ao tempo provável de pintura do políptíco, pelo menos catorze anos mais tardio.

Acresce que o texto original não permite decidir sem margem para dúvida se a palavra todos se refere exclusivamente aos seis cavaleiros, i.e. «todos os seis vestiam de vermelho», ou também ao conjunto do séquito municípal e dos anciãos (todos eles vestidos de «governação»?). No latim original (pág. 46):

«Hora autem secunda post meridiem, uenerunt sex milites bene armati et splendide de consulatu eiusdem ciuitatis Ulixbonensis, quos totus consulatus et maiores natu sequebantur. Et omnes erant uno colore rubeo scarlato ornatissime uestiti. Qui milites per heroldum eorum uocauerunt (etc.)».

Mais problemático ainda, a percepção do homem de vermelho do painel como um vereador da câmara teria o efeito de tornar quase inevitável a identificação da relíquia como sendo a oferecida pelo infante D. Pedro (para já nem mencionar a dificuldade acrescida de identificar a dupla figura central como algum santo diferente de Santo António). Acontece que existe uma descrição absolutamente fiável desta última e não parece corresponder com facilidade à imagem do painel. Trata-se do documento notarial de autenticação da relíquia confiada ao infante, passado pelas autoridades municipais de Pádua, onde se especifica claramente tratar-se de «um pedaço da pele e do cercilho, com cabelos» (cf. Jorge Filipe de Almeida et al., 2000, pág. 71).

Ou seja, de uma (quase certamente pequena) porção de pele que incluía parte da sobrancelha, uma descrição que parece muito distante das tentativas de identificação anatómica do objecto do painel, que aparenta uma dimensão considerável e uma rigidez própria de estrutura óssea. A melhor dessas tentativas, em nossa opinião, é a que o interpreta como «uma representação icónica de um osso Occipital com o seu bordo inferior fracturado» (v. João Goyri-O’Neill et al., 2013, acedido em 03 de Maio 2019), o que ainda mais afastaria o objecto do painel da relíquia trazida de Pádua.

Tudo indica que a relíquia do santo oferecida ao infante D. Pedro foi genuína, mas, ainda que assim não tivesse sido, é evidente que o documento de autenticação não poderia ter deixado de corresponder ao fragmento de anatomia nele descrito.

Por outro lado, a hipótese de a imagem corresponder, não a um osso, mas a um pedaço de couro cabeludo identificável com o descrito no affidavit de Pádua, poderia escorar-se na coloração e pouca espessura do objecto, mas não nos parece totalmente convincente, devido à protuberância central alongada e aparentemente rígida que exibe, à ausência de vestígios de sobrancelha ou cabelos, e à própria dimensão do fragmento, cuja obtenção teria exigido o escalpelamento de uma boa parte da cabeça do santo (compare-se a dimensão da relíquia com a da cabeça da figura que a exibe).

Apesar do que precede, o leitor que avançar no método de desconstrução da charada que utilizamos para a pôr em evidência, constatará que, longe de cancelar o acesso ao significado da figura vermelha num tempo de compreensão e leitura alegórica do painel, a sua coexistência com possíveis imagens realistas instrumentalizadas para esse acesso não seria de modo algum contraditória. Por outras palavras, o reconhecimento de uma eventual imagem familiar, como poderia ser a da cor vermelha no alegado contexto camarário – que sendo a nosso ver improvável, não é de todo impossível – não impediria de forma alguma que ela fosse utilizada para veicular a linguagem simbólica para que, como veremos, toda a organização do políptico concorre. E por maioria de razão essa coexistência particular se torna plausível se o local inicialmente previsto para colocação da obra tiver sido – como consideramos possível, por razões que adiante explicaremos – a Casa de Santo António.

3)  Existem, no entanto, boas razões para pensar que o restauro de Luciano Freire foi tecnicamente quase perfeito. Pequenos pormenores que só fazem sentido na fase final da decifração da charada mantêm-se intactos, e as únicas falhas aparentes dizem respeito às estranhas expressões de duas figuras (as da figura central, reprovadora do lado do livro aberto e sorridente do lado da vara, e do judeu, de semblante duro e carregado) muito fáceis de alterar, uma vez que dependem de pequenas sombras facilmente ilusivas se não forem compreendidas. Essas expressões parecem efectivamente ter sofrido com o restauro, mas Joaquim de Vasconcellos (em O Comércio do Porto de 28 de Julho de 1895) captava ainda a expressão dura do Rigor alegórico anterior ao restauro da seguinte forma: «aponta com gesto arrogante, todo ele vaidoso, enfatuado na sua sabedoria de rabino, para um livro de confusos caracteres fantasiados. É bem o tipo da sinagoga militante (...) por detrás do rabino dois clérigos de alva, esculturais, profundamente característicos, postos de sentinela ao bilioso sectário».

4)  V. Obras, vol. I (edição crítica de Adelino de Almeida Calado, 1960).