CAPÍTULO III (CONTINUAÇÃO)

OS PROBLEMAS LOCAIS

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PAINEL DOS PESCADORES

O triângulo verde  1)  TRÊS HOMENS NO LUGAR DOS PEIXES

Para alguns espíritos tolerantes, não há maldade nenhuma na representação de pescadores apanhados na sua própria rede. Para outros, tratar-se-ia antes de navegadores ilustres, simplesmente devido à conotação marítima. Ambas as hipóteses – pescadores anónimos ou figuras históricas – parecem absurdas: os pescadores, que se saiba, costumam transportar redes às costas, mas não costumam ocupar o lugar dos peixes, e a pesca humana que os nossos navegadores efectuavam ao longo da costa africana visava outro tipo de gente.

Fala-se por vezes na hipótese de a rede ter sido acrescentada por mão diferente da do pintor original, como se isso dispensasse a sua compreensão ou explicasse o não-registo dos seus finos traços nas radiografias por misteriosas razões cronológicas, e não pelas decorrentes da própria natureza dos pigmentos ou escassez da tinta em traços de aplicação precisa onde se realizam poucas e rápidas passagens. Note-se, aliás, que alguns contornos dos flutuadores de cortiça que acompanham a malha da rede são observáveis nos registos radiográficos, de forma ténue mas comparável a outros pormenores do políptico cuja presença desde a origem não é posta em causa. E raramente se repara que as três figuras que a rede reúne possuem uma outra característica comum: envergam todas elas a cor verde.

Mais uma vez a regra da irresolução 📜 nos ajuda a confirmar a suspeita inicial: será possível dizer que as três figuras dentro da rede mostram diferentes tons da mesma cor? O que é obviamente verdade para as duas figuras mais destacadas, é menos óbvio para a terceira: a figura em cabelo do último plano, por cima de cujos ombros a rede passa, mostra a cor verde clara de uma parte da sua indumentária unicamente através de um pequeno fragmento triangular, visível à esquerda e logo abaixo do «capuz» da principal figura verde, mas o facto de o seu vestuário visível no nível superior ser exclusivamente branco (como as camisas das restantes figuras apanhadas na rede) admite o ponto de vista ingénuo que nega a evidência, e a evidência é esta: o fragmento verde claro pertence a uma toga da figura em cabelo do último plano, porque se situa no prolongamento do seu ombro e está visivelmente separado da capa da figura principal (observem-se os dois lados do «capuz» para se compreender o seu recorte). Registe-se todavia o cuidado em evitar uma percepção indiscutível da correlação entre a cor das três figuras e a rede que as envolve, através da ausência de verde na parte superior da figura a que o triângulo necessariamente pertence.

Novamente uma intenção de ambiguidade, através de um pequeno triângulo verde que aponta no mesmo sentido da rede: algo de comum reúne as três figuras, e não deve ser simplesmente um caso de inépcia piscatória.

Figura prostrada  2)  UMA FIGURA DESORIENTADA

Se três figuras verdes estão inseridas numa rede, uma outra se destaca no primeiro plano, fora dela e vestida de castanho. Mais um pescador? Mas porquê a cor diferente e a extrema prostração? E sobretudo porque dirigirá as suas preces ao observador dos painéis, em vez de se orientar para o presumível centro das venerações, a inefável figura central que passa por S. Vicente? Um exame, mesmo distraído, da figura castanha, mostra que ela se dirige frontalmente para o observador que a contempla.

  3)  UM PSEUDO-ROSÁRIO COM CONTAS IDÊNTICAS

Nas mãos da figura prostrada encontra-se um rosário com um aspecto algo estranho: uma simples fiada de contas sem distinção ou divisões entre elas, que se parecem, como muitas vezes já foi notado, com vértebras de peixe desprovidas de espinhas, ou seja, pequenas secções cilíndricas com bases côncavas, todas iguais e não servindo portanto para distinguir as orações. A comparação com o rosário que se pode ver nas mãos da mulher de vermelho no painel central contíguo, onde contas redondas se agrupam em dezenas com contas de formato diferente intercaladas entre elas, torna ainda mais evidente o aspecto invulgar da fiada de contas do painel dos Pescadores.

É interessante notar que a forma das contas, sugestiva de vértebras de peixe, parece em sintonia com a rede de cuja existência original por vezes se duvida, já que ambas nos remetem directamente para a ideia da pesca e, como veremos, seu simbolismo religioso. E todas as contas feitas, veremos que a hipótese do pescador que conta os seus peixes tem toda a razão de ser, mas não no sentido literal que pretende descobrir membros de alguma confraria de pesca realmente existente enredados no seu próprio instrumento de trabalho...