CAPÍTULO III (CONTINUAÇÃO)

OS PROBLEMAS LOCAIS

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PAINEL DO INFANTE

Mangas desiguais  1)  UMA MANGA DIFERENTE DA OUTRA

De todas as incongruências do políptico, nenhuma como esta revela tão claramente a intencionalidade do pintor. O exame das pequenas reproduções dos painéis que se encontram em livros ou no desdobrável do Museu de Arte Antiga, não é muito esclarecedor porque uma das mangas da mulher de vermelho é um pouco cortada, já que os painéis são quase sempre ligeiramente amputados nas reproduções e, mais uma vez, o pintor aproveita os seus limites extremos para disfarçar a sua mensagem.

O que o visionamento directo revela é o seguinte: a manga do vestido vermelho próxima do limite esquerdo do painel é completamente diferente da outra, não de forma que possa ser atribuída a alguma moda conhecida ou artifício de representação artística, mas de uma maneira gritante que implica a proposta de adivinha ou charada: a primeira manga é apertada, a segunda frouxa; a primeira sugere um vestido novo e bem confeccionado, a outra sugere o contrário de forma enfática. O efeito da manga frouxa é extraordinariamente sublinhado pela forma como pende do ombro e se afeiçoa mal ao braço da figura que a enverga. A diferença entre as duas curiosas mangas de um mesmo vestido é reforçada perto dos pulsos e pelo anel de pelo que cinge uma delas.

Como interpretar tudo isto? A seu tempo integraremos esta anomalia no contexto global. Por agora, limitamo-nos a referir a improbabilidade da única explicação que às vezes (raramente) é avançada: não se trata de uma moda porque as modas de mangas diferentes que historicamente se verificaram (raras e usualmente no vestuário masculino) implicaram por vezes diferenças de cor, mas não tanto de feitio e muito menos de estado de apresentação. Nunca, em época alguma, se confeccionaram vestidos apertados de um lado e frouxos do outro, ou novos de um lado e usados do outro, e é exactamente essa a impressão que as mangas vermelhas transmitem.

Deixamos por agora ao leitor a descoberta do que podem representar mangas apertadas ou frouxas e anéis de pelo enquadrando gestos humanos de todos os tempos, na esperança de que a percepção da charada no seio do políptico dos mil equívocos vá aumentando desse modo. Um psicanalista moderno faria todo um processo de motivação subconsciente ao pintor – semelhante aos que têm sido feitos a Bosch, ignorando que uma pintura não é um sonho e que os símbolos pintados têm a sua primeira tradução na mente consciente que os invoca – mas a intenção das mangas vermelhas tornar-se-á bem visível quando adiante as integrarmos na rede simbólica global e confirmarmos o seu significado através do desenho subjacente à pintura, desvendado há alguns anos atrás. Notemos entrementes que a tese da veneração vicentina evita a todo o custo o simples registo das excêntricas mangas sem paralelo iconográfico conhecido...

Livro central  2)  UM LIVRO DESCONTÍNUO

A fascinante particularidade do livro central é a de poder ser lido, mas não como um livro normal onde as páginas obedecem a uma sequência realista. Enquanto os outros dois livros (um fechado, debaixo do braço da figura que ocupa o ângulo superior direito do painel do Arcebispo; outro ilegível nas mãos da figura vestida de negro do painel da Relíquia) parecem ser simples emblemas para caracterizar as figuras que os exibem, o livro central contém elementos que apontam numa direcção diferente. A representação de livros nas mãos dos seus leitores e voltados para os mesmos é vulgar na pintura do séc. XV; o da figura central dos painéis, porém, está orientado na direcção de uma das personagens (e do observador) de um modo que aponta ostensivamente a sua importância. Os fragmentos de linhas em latim pertencentes a páginas diferentes são igualmente pouco usuais: as duas primeiras páginas que deveriam ser contínuas não o são, e a terceira mostra uma sequência evanescente de caracteres que parece enquadrar-se bem na hipótese da charada: se o pintor se dá ao trabalho de ocultar em parte as duas primeiras páginas para nos mostrar uma dezena de palavras parcialmente legíveis da terceira, isso pode ser interpretado como um convite à decifração do todas elas.

A explicação habitualmente avançada para explicar o carácter díspar das duas primeiras páginas – que deveriam de qualquer modo ser sequenciais – é a de se tratar de um missal. O desejo de fugir às «especulações» é de tal ordem que, por vezes, nem sequer se concebe que um livro puramente imaginário, com trechos escolhidos pelo pintor, é perfeitamente admissível na tese vicentina ou em qualquer outra. Quase apetece perguntar se alguém acredita que o modelo para a figura central tenha sido o próprio S. Vicente (ou algum dos seus émulos na hagiografia dos painéis) em pessoa...

É verdade que, quando se aceitam páginas imaginárias, se compreende a seguir que as linhas estão semi-ocultas, e que a terceira é quase para adivinhar. Para quê então um livro imaginário e convoluto se a sua leitura não apontar a nada? As perguntas são incómodas quando a charada não é avistada, e o missal desarrumado arruma todas as questões...

Mas os missais, que se saiba, não são desarrumados e muito menos descontínuos, e a segunda página parece começar a meio de um trecho cujo início não é discernível no fim da primeira. Fornecemos aqui a transcrição latina das duas primeiras páginas, reconstituída a partir das meias-linhas legíveis.

A primeira página provém do Evangelho de S. João (14, 28-31), e indicamos, para melhor compreensão do seu sentido, o equivalente em português (da Bíblia de João Ferreira de Almeida) da passagem latina:

1ª PÁGINA:  «(...) o Pai é maior do que eu. Eu vo-lo disse agora, antes que aconteça, para que, quando acontecer, vós acrediteis. Já não falarei muito convosco, porque se aproxima o príncipe deste mundo, e nada tem em mim; mas é para que o mundo saiba que eu amo o Pai, e que faço como o Pai me mandou.».

Indicamos a seguir o texto da segunda página no latim por razões que adiante se tornarão evidentes, sem a indicação de abreviaturas e com as divisões de linhas representadas por duas barras verticais ||. A sua proveniência é o Prefácio da Missa do Espírito Santo:

2ª PÁGINA: «(...) Domine, Sancte Pater, om||nipotens aeterne Deus: per Christum Dominum|| nostrum. Qui ascendens super om||nes caelos, sedensque ad dexte||ram tuam, promissum Spiritum|| Sanctum (hodierna die) in filios|| adoptionis effudit. Quapropter p||rofusis gaudiis, totus in orbe terrarum|| mundus exsultat. Sed et supernae Vir||tutes atque angelicae Potestates|| hymnum gloriae tuae concinunt, si||ne fine dicentes: sanctus (...)».

Conforme se pode observar, as linhas da segunda página são já aparentemente imaginárias e longas demais para caberem de forma realista em espaço tão reduzido. A identificação do texto, à semelhança do da primeira página (embora com menor visibilidade de cada linha completa), faz-se, no entanto, sem margem para dúvida, devido à ocorrência de fragmentos equidistantes na porção visível de cada linha imaginária. Veremos mais tarde como um processo similar permite identificar o texto da terceira página através de pouquíssimas letras.

Por agora, interessa-nos apenas salientar a inevitabilidade do reconhecimento da charada, e por isso apontamos a aparente ausência do início do Prefácio da Missa do Espírito Santo. Note-se que apesar de não ser possível determinar com exactidão onde começa a primeira linha da segunda página, torna-se óbvio que as palavras «Vere dignum et justum est, aequm et salutare, nos tibi semper et ubique gratias agere (...)» que constituem o início do Prefácio da Missa do Espírito Santo e o completariam, teriam constituído pelo menos duas ou três linhas adicionais à cabeça da página, anteriores ao trecho que transcrevemos a partir da palavra (algo arbitrariamente escolhida) «Domine». Mesmo que admitíssemos um estranho missal sem separações de textos, e colocássemos o dito Prefácio imediatamente a seguir ao trecho de S. João, seria difícil justificar a representação de um missal realista feito de trechos incompletos ou com páginas arrancadas.

A conclusão é que não se trata exactamente de um missal, como é vulgar afirmar-se. Trata-se de um livro imaginário, e que não está lá apenas para que a sua leitura crie uma ambiência vaga: está lá para ser decifrado como engrenagem precisa e central da charada, ostensivamente exibida como um desafio ao observador.

À sombra do chapelão...  3)  UMA FIGURA DESACTUALIZADA

O homem do chapéu negro – usualmente identificado com o infante D. Henrique – é o mais conhecido rosto, não só dos painéis ou do séc. XV português, mas de toda a história nacional. Pretendemos de momento salientar apenas um elemento à primeira vista algo incongruente da representação dessa figura: parece ter havido uma intenção de a mostrar – numa época em que se usavam sobretudo os cabelos compridos, bem como barretes do tipo que figura nos painéis – com o corte de cabelo curto e rectilíneo e o chapeirão dito «borgonhês» que conheceram a sua maior voga alguns anos antes. O nosso registo visual da moda no vestuário do séc. XV é, naturalmente, muito mais centrado nas iluminuras e pinturas oriundas da Borgonha ducal, de França ou de Inglaterra, que de Portugal, mas o que se pode ver nos painéis acompanha bem – et pour cause, conforme veremos – o que se sabe dessa moda.

Não interessa discutir aqui até onde seria normal a coexistência de duas modas masculinas um pouco afastadas no tempo, sendo que chapeirão e barretes coexistem igualmente, por exemplo, em iluminuras onde figura Filipe o Bom, duque de Borgonha, um conhecido adepto da moda do chapeirão que aparentemente a prolongou para além do seu período de maior voga. Basta-nos registar que a figura de chapéu negro e cabelo curto é suficientemente distinta de todas as outras para revelar uma provável intenção: a de retratar uma personagem proeminente que se situava no passado ou precedeu as outras. Se notarmos a presença, entre as figuras principais do mesmo painel, de um homem mais jovem e de uma criança mesmo ao lado do homem do chapeirão, poderemos talvez sugerir três gerações distintas de uma família – e provavelmente de uma família real, dado o seu destaque no painel posicionalmente prioritário.

Limitamo-nos, por agora, a apontar o aspecto «diferente» da figura do homem do chapeirão em relação às outras e a notar o seguinte: a explicação das diversas modas masculinas visíveis no políptico através da atribuição de épocas diferentes à execução de cada painel, não faz muito sentido, porque elas coexistem claramente no painel do Infante. A conclusão a que apontamos – a menos que a pintura do dito painel tenha sido interrompida durante anos – é que as modas (sobretudo os cortes de cabelo) de diferentes períodos veiculam, como tantos outros aspectos dos painéis, uma informação intencional.