CAPÍTULO III OS PROBLEMAS LOCAIS |
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Uma vez referidos alguns problemas relativos ao políptico global que apontam no sentido da existência de uma charada, trataremos a seguir das anomalias de carácter local em cada um dos seis painéis. Não será demais repetir que um aspecto insólito da mais respeitada e citada literatura sobre os painéis é o não-registo ou minimização dos problemas que passamos a enumerar.
Invariavelmente, a descrição dos painéis é feita como se os inúmeros ilogismos que os cobrem dispensassem a atenção e fossem devidos ao mero acaso. Refere-se a «pesada carga simbólica» sem a procurar apontar, como se pairasse sobre o políptico algum impedimento de fazer referências concretas. O caminho para a sua compreensão passa, no entanto, por uma descrição exacta e pelo isolamento dos pormenores que requerem explicação. Passamos pois a descrever a face silenciosa (ou silenciada) dos painéis e aguardamos uma descrição análoga para os mistérios da Aspa, da Coluna e dos quatro Santos atribuídos a Nuno Gonçalves, por parte dos que não aceitam a autonomia do políptico composto por apenas seis elementos...
PAINEL DOS FRADES |
1) UM ESPAÇO OBSCURO
Paradoxalmente a mais visível das anomalias, a sua notoriedade é de tal ordem que nem mesmo as teses mais ortodoxas se permitem ignorá-la completamente. O espaço obscuro do painel dos Frades já foi descrito, consoante o santo ou santa ou par de santos invocados, como uma árvore, um tronco, uma cruz e, quando necessária a conciliação com a veneração vicentina, uma tampa de caixão ou um leito de pregos (possíveis objectos relacionáveis com S. Vicente). Por extraordinário que pareça, jamais é descrito como um espaço negro ambíguo destinado a fazer pensar. Por mais opostas que possam ser as teses em confronto, os seus defensores atingem o consenso num ponto: a interpretação do buraco negro do painel dos Frades dispensa a reflexão, e não há qualquer necessidade de ponderar a intenção da espessa penumbra que parece esconder o objecto de sua escolha, introduzida nessa zona pela mão do pintor de todo um políptico sem outro espaço negro ou vazio. Todos parecem encarar essa área como se equivalesse a uma zona acidentalmente velada numa fotografia. Uma pintura, no entanto, não é uma fotografia, e se resulta obscura e indefinida é porque a mão do pintor desenhou contornos ambíguos e escureceu as tintas para obter esse efeito.
Por que razão não poderiam uma tampa de caixão ou uma tábua de um leito de pregos ser pintadas de forma compreensível? Por que razão se teriam de confundir os seus recortes com o limite do painel? Do lado oposto do políptico, deparamos com um objecto cuja função pode ser misteriosa, mas cuja natureza é óbvia: uma caixa de madeira vazia, com a textura do material que a constitui bem detectável e as tábuas que a formam bem visíveis. Poder-se-á argumentar que a caixa vazia tinha de ter uma tampa, mas por que razão teria de ser a tal ponto obscura? Ou que o leito de pregos se encontrava carbonizado, mas é perfeitamente possível desenhar e pintar objectos escuros como bréu de forma decifrável. O efeito que parece ter sido procurado é o inverso: dissimular em vez de mostrar.
Se, por outro lado, a intenção do pintor foi criar uma sensação de vazio e disfarçar esse espaço tornando-o discutível – mais uma vez a situação de irresolubilidade 📜 – então foi incontestavelmente bem sucedido, porque a impressão provocada pela mancha obscura no seio da cerrada aglomeração de figuras é exactamente essa. A intenção de criar um vazio é, de resto, confirmada por dois pormenores: o rosto meio oculto mesmo ao lado, que parece chamar a atenção para o espaço reservado que não pode ser preenchido (1), e a forma como a manga do frade de longas barbas cobre a sua mão (ou mãos), permitindo a ambiguidade desejada entre uma posição de mãos juntas em oração ou de suporte de um objecto utilizando uma única mão. Para melhor esclarecimento, compare-se a manga que impede que se veja se se trata de uma única das mãos ou de ambas, com a manga e mãos do frade em primeiro plano, que não permitem qualquer segunda leitura.
O disfarce do vazio permite mais uma vez a irrupção do ponto de vista ingénuo, que é desta vez conseguida através de pequenas marcas obscuras que passam por ser – entre muitas outras coisas – os furos de pregos (que não estão lá) na tábua (que não pode ser mais do que uma) da cama (que deve estar carbonizada) de S. Vicente (2). Semelhante relíquia não consta de nenhuma lista conhecida, e não se percebe por que razão seriam os furos dos pregos tão escassos e pintados de tal forma que se tornassem apenas muito vagamente visíveis a menos de um metro de distância. Talvez falta de tintas para os acabar de pintar, mas o resultado parece muito mais trabalhado na sua subtileza ambígua do que uma simples representação linear e sem mistérios de meia dúzia de buracos poderia permitir...
Deve ainda ser registado um elemento misterioso adicional – frequentemente notado pelas teses menos ortodoxas – na figura do frade de barbas que suporta o objecto negro indefinido: consiste num esboço de cruz muito ténue desenhado sobre o seu barrete (e ausente dos outros). Que tantos objectos e sinais nebulosos consigam existir num espaço tão reduzido sem que a natureza da charada seja apreendida, é talvez o maior dos milagres de S. Vicente (ou de algum dos seus émulos), conforme iremos continuando a salientar.
Entre os dois frades em cabelo, nas mãos do de trás, encontra-se outro objecto de contorno preciso, mas de fraca definição. Mais uma vez a síndrome da «fotografia velada» parece dominar as tentativas de interpretação, que raramente se interrogam sobre a razão de ser de tantas ocultações e disfarces. A veneração vicentina exige, é claro, que seja uma relíquia de S. Vicente, desconhecida e tapada por um pano preto, mas a questão que se levanta é esta: por que razão, na perspectiva que exclui a charada, seria um objecto escondido de forma a não ser identificável?
Não seria necessária a visibilidade da relíquia se ela se encontrasse nalgum relicário, ou acompanhada por alguma referência que os fiéis pudessem reconhecer, mas um simples pano preto desprovido de qualquer hipótese de decifração parece absurdo. Não consta que alguma relíquia de S. Vicente fosse guardada ou exibida de forma tão singela, e não está lá nenhum relicário cravejado de pedrarias familiares que pudesse tornar o conteúdo reconhecível aos olhos dos fiéis. A objecção é, de resto, válida para qualquer objecto que se escondesse debaixo de um pano, e não só uma relíquia. Para quê incluir um objecto de forma invisível e incompreensível?
A alternativa é compreender que não se trata de um objecto escondido, mas do próprio objecto em si. Se notarmos o aspecto enrolado da sua base e a forma como parece estar enquadrado pelas duas únicas cabeças descobertas do painel, poderemos sugerir um barrete semelhante ao do frade em primeiro plano como o melhor candidato ao lugar. Adiante veremos que sentido pode fazer semelhante ideia conjugada com o espaço negro ambíguo e outras pistas que se cncontram noutro painel.
Para já, notemos apenas a ambiguidade (mais uma) da possível calota do frade que segura o barrete. É impossível dizer ao certo se existe de facto uma calota cor de carne, ou se se trata simplesmente de uma tonsura desmesuradamente ampla, acompanhada de uma disforme franja capilar sobre as orelhas e testa, mas não será possível detectar mais uma vez as ironias do pintor? Se se trata de uma calota, isso significa que o barrete não pertence nem se destina a quem o segura, e se por enquanto tudo isto parecer estranho, convirá reflectir sobre as alternativas possíveis: a relíquia secreta condenada a ficar escondida para sempre, e a tonsura desastrada que mais parece uma calota e que, por mais um curioso acaso, se verifica exactamente na figura que convém para fazer reflectir sobre a pertença do barrete que ela própria segura nas mãos.
1) Adiante veremos o significado dos outros dois rostos semi-ocultos do políptico.
2) Já alguém disse, comentando o espaço do políptico mais entusiasticamente preenchido pelos estudiosos, que se tratava de crateras bem visíveis de uma paisagem lunar, durante uma lua nova...