CAPÍTULO V (CONTINUAÇÃO)

A LÓGICA DO ESPELHO COMPLETO

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SIMETRIAS FRACA E FORTE

Simetria fraca

Simetria forte

Elementos adicionais puramente estéticos contribuem para reforçar a superior simetria da disposição modificada. As duas manchas de cor verde e vermelha nos extremos do políptico são, a nosso ver, e para além da lógica implícita na sua significação simbólica, muito superiores ao desequilíbrio da distribuição de cores inicial, e um dado adicional aponta ainda na direcção em que avançámos. Considerem-se os dois cantos inferiores do políptico completo, nas duas disposições sucessivas dos seus painéis: na primeira, provocando uma desarmonia estética óbvia, as pregas elaboradas do hábito branco do primeiro frade tapam quase completamente as lajes do chão (note-se que a forma como esse hábito está desenhado e prolongado até ao limite do painel trai justamente essa intenção); na segunda disposição, pelo contrário, o chão é visível e proporciona um paralelismo equilibrado com o extremo oposto do políptico. Para nos lembrar que nada é deixado ao acaso, a cor das lajes do chão é branca do lado da figura da Piedade, e avermelhada do lado oposto, na região contígua aos panejamentos da figura vermelha, sugestiva do Sacrifício e do Exemplo dos Santos. Branco, se quisermos, do lado da pureza, vermelho do lado da coragem. E por que outra razão se lembraria o pintor de mostrar lajes avermelhadas num único local, senão para focar a atenção na harmonia que deve ser procurada e nos significados por trás dela?

Completada assim a análise de simetria global sugerida inicialmente pelos painéis centrais, é chegado o momento de fazer uma comparação entre as duas disposições do políptico, e procurar as suas virtudes respectivas, porque – como, mais uma vez, o espírito ingénuo que não detecta a charada poderá objectar – também a disposição inicial apresenta virtudes que se perdem na transformação. O balanço de cada uma é o seguinte:

    A) DISPOSIÇÃO INICIAL (SIMETRIA FRACA):

Inicial
  1. Uma caixa vazia equilibra um objecto carbonizado (?).
  2. Um cavaleiro roxo reza pelos restantes como um monge prostrado reza pelas figuras dentro da rede.

    B) DISPOSIÇÃO MODIFICADA (SIMETRIA FORTE):

Modificada
  1. Introduz simetria simbólica através da aquisição de significado do conjunto.
  2. Introduz simetria na disposição das cores.
  3. Introduz simetria no posicionamento geométrico das figuras.
  4. Introduz tensões simbólicas, cromáticas e geométricas concentradas numa figura (a quarta figura do painel dos Cavaleiros) e num espaço vazio (do painel dos Frades, agora simétrico do painel dos Cavaleiros), que prenunciam o passo seguinte da transformação.
  5. Explica a iluminação contraditória como pista intencional para a troca dos dois painéis menores da esquerda.
  6. Explica a primeira página do livro como «gatilho» para o início da transformação através da mensagem piedosa «Pater maior me est» que despoleta um simbolismo simétrico e complementar ao da vara de comando (a segunda página funcionará de modo idêntico numa fase posterior da charada).
  7. Coloca os dois cantos inferiores do políptico de seis painéis em harmonia.
  8. Explica a simetria fraca inicial como primeira fase de um processo destinado a iludir e a veicular uma segunda mensagem (como veremos).
  9. Explica o número exacto de 60 figuras dividido em dois grupos de 30 para fazer considerar os problemas de simetria decorrentes da desorganização inicial dos painéis menores, todos eles com números desiguais de figuras.

Os dois últimos pontos são a nosso ver extremamente potentes como explicação do problema nos sucessivos passos da sua resolução. Para compreensão do simulacro de simetria – tão fraca e insatisfatória – da colocação inicial, é necessário avistar a disposição modificada, e esta é a única maneira de dar sentido aos desequilíbrios numéricos dos painéis menores (1). Por outras palavras:

A simetria forte implica a simetria fraca previamente existente, que só assim adquire sentido, mas o inverso, é claro, não sucede: se considerarmos a débil simetria inicial como definitiva, tudo o que obtemos é um objecto carbonizado em equilíbrio instável com uma caixa vazia, e uma montanha de problemas por resolver...

Mas também – é verdade, e é mais uma pista para o leitor com informação histórica começar a compreender outras coisas – um cavaleiro de roxo (o único que parece estar em posição de oração) a rezar pelos restantes três como o frade pelas três figuras dentro da rede. Se os quatro cavaleiros forem os quatro tios do rei, a intenção e lógica da colocação inicial torna-se notória: em torno de D. Afonso V parece completar-se o quadro familiar. Ultrapassadas as lutas entre a sua mãe D. Leonor e o seu tio D. Pedro, encerrado o trágico episódio de Alfarrobeira, em que este último, depois de abandonar o poder, encontrou a morte frente à coligação dos seus inimigos à qual se reuniu o seu próprio irmão D. Henrique, é toda a descendência legítima do rei de Boa Memória, unida como no passado, que parece estar representada nos painéis.

D. Duarte no painel dos reis – juntamente com a mãe, a mulher e o filho do seu filho D. Afonso V – e os quatro irmãos Pedro, Henrique, João e Fernando no painel dos Cavaleiros. Da Ínclita Geração de D. João I, dilacerada pelas tragédias nacionais de Tânger e Alfarrobeira, aqui reunida à volta do seu neto D. Afonso V, só estará ausente a sua filha Isabel, duquesa de Borgonha, a menos que se dissimule por trás do espelho e das suas transformações...

Quanto à casa de Bragança, com a qual se costumam povoar os tais painéis de S. Vicente, todas as pistas recomendam a sua exclusão da reconciliação familiar em torno de D. Afonso V. Se, por outro lado, os quatro cavaleiros forem os tios do rei, e o infante D. Henrique rezar pelos restantes três irmãos como parece viável no contexto pós-Alfarrobeira, a mensagem inicial será certamente a da reconciliação, mas por que razão se coloca discretamente uma cruz partida ao pescoço do único dos cavaleiros que parece ocupado em oração? A resposta surgirá por si própria com a simultânea identificação das quatro figuras e a resolução das incongruências aparentes no seu painel.


NOTAS

1)  O problema das duas simetrias conflituantes resolve-se pois no tempo e não no espaço, e esta constatação explica a longa história das propostas de disposição dos painéis periodicamente repetidas e sempre insatisfatoriamente racionalizadas, que só tem paralelo nas disputas sobre as identidades das personagens retratadas.

O leitor curioso de conhecer as numerosas tentativas de disposição dos painéis desde a sua descoberta moderna poderá consultar o balanço que fazem Paula Freitas e Maria de Jesus Gonçalves (1987), e verificar que o incómodo provocado pela simetria incompleta dos painéis menores tem suscitado as mais díspares arrumações para o conjunto, desde a proposta inicial de José de Figueiredo que dividia os seis painéis por dois trípticos separados, até às interpretações que optam pela desarticulação e dissolução dos seis no seio de um conjunto mais vasto onde chegam a ser imaginados a diferentes alturas, apesar da continuidade horizontal do friso de figuras que ocupa o background. Pode dizer-se que o problema é de tal ordem que as únicas disposições que ainda não encontraram defensores são as que colocariam os misteriosos habitantes dos painéis de pernas para o ar...

Basicamente, as tentativas de disposição dos seis dividem-se pois em três grupos: em dois trípticos separados, num único políptico horizontal, ou espalhados no seio de um conjunto mais vasto. É curioso observar que, em todas essas tentativas, as considerações de simetria ocupam um lugar importante, mas o poder quase hipnótico do paralelismo entre o «objecto escuro» indefinido e a caixa vazia de madeira parece ter sistematicamente impedido a percepção da simetria rival e da sua superioridade estética (manchas de cor, atitudes) e lógica (uma vez compreendido o seu sentido). O emparelhamento posicional dos quatro painéis menores tem continuado portanto a ser – à semelhança do emparelhamento material em que foram encontrados, revelador de antiga incompreensão – o de Frades / Relíquia e Pescadores / Cavaleiros.

As teses que adoptam a arrumação em dois trípticos têm seguido a disposição de José de Figueiredo:

......

As teses que procedem à ordenação em políptico horizontal – mais variadas, uma vez que alguns dos quatro painéis menores são por vezes colocados em posições interiores aos dois painéis maiores – têm de igual modo pressuposto o referido emparelhamento, seguido desde a primeira disposição em políptico por José de Bragança e Almada Negreiros. A única excepção que conhecemos – para além da referida na introdução – é a seguinte proposta de Fernanda Espinosa, que parece levar em conta o conflito das duas simetrias rivais, mas não capta a necessidade da sua resolução em tempos sucessivos:

...

Quanto às teses que integram os seis painéis em conjuntos hipotéticos mais vastos, elas reconstituem por vezes o políptico de seis no seu seio sob forma de predela, ou então desarticulam a estrutura horizontal e procedem à colocação dos painéis individuais a alturas diferentes, mas sempre mantendo o referido emparelhamento para os quatro menores, o que mostra bem a dificuldade que existe em ultrapassar a falsa simetria que inicializa a charada, rumo à solução que progressivamente a resolve, fornecendo sentido ao todo.