CAPÍTULO IX (CONTINUAÇÃO)

A PEDRA VERDE

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A COROA DE PÉROLAS

O TRAJECTO DAS PÉROLAS
Inf. D. Pedro Isabel João Futuro D. João II
Primeira Mais cinco Presente Futura coroa
PEDRO
ISABEL
JOÃO
FUTURO JOÃO II

A primeira pérola – dizíamos antes da interrupção necessária – premeia o cavaleiro sem mácula, porque assim o vêem os seus, e essa visão determina todo o políptico. É a primeira porque adquire significado antes das outras, confrontada com uma cruz partida mesmo a seu lado. Uma vez compreendida a sua importância e a forma como reforça todos os restantes dados simbólicos que apontam o cavaleiro verde como uma das figuras em torno de quem se estrutura a mensagem do políptico, somos levados a ponderar a razão de ser das outras pérolas sobre as cabeças dos dois jovens simétricos dos painéis centrais, e a concluir a surpreendente identidade do jovem soldado que merece a honra de reflectir o príncipe João, futuro D. João II...

A primeira ligação no trajecto das pérolas passa pela jóia que a filha do infante D. Pedro traz ao peito: uma esmeralda – por cima da fenda verde – assinalando a matriz da Esperança conforme com o episódio da esmeralda quebrada, acompanhada de cinco pequenas pérolas, talvez em representação dos cinco seus irmãos que, como ela e as restantes figuras reais do painel à excepção do seu cônjuge e do seu filho, já não se encontravam em vida no final de 1466: Pedro, João, Jaime, Beatriz e Catarina.

A segunda ligação conduz-nos da pérola do cavaleiro verde da Esperança – através da sua filha – a outra pérola que coroa o barrete do seu neto, cuja figura reproduz as cores da indumentária e a própria pose do avô. O significado dessa pérola, numa figura que copia outra de tão perto, é fácil de ver quando se admite a hipótese da origem borgonhesa do políptico e se conhece o historial das relações da duquesa de Borgonha com o partido vencedor em Portugal, bem como a sua acção incansável em prol da memória do irmão derrotado em Alfarrobeira e seus descendentes. O que a pérola simboliza é a gestação do Príncipe Perfeito sob o reinado de seu pai D. Afonso V: sobre a cabeça da criança que um dia assumirá a coroa como D. João II, o símbolo da perfeição representa o voto de que a memória e exemplo do seu avô materno sejam recuperados no seu reinado futuro.

Que o reinado de D. João II tenha, sob múltiplos aspectos, representado justamente essa recuperação, e o cognome com que passou à história tenha sido o de «Príncipe Perfeito», confere à pintura o estatuto de voto que se cumpriu, de veículo de uma esperança que se realizou, e não de profecia omnisciente. Não nos interessa aqui saber se D. João II foi realmente perfeito ou imperfeito, porque isso não é relevante para a compreensão dos painéis. Mas interessa-nos, isso sim, porque esse é um dos fios condutores da charada, compreender as semelhanças entre os dois jovens, ambos com estranhos barretes feitos de partes destacadas e ambos coroados por pérolas, e compreender também as diferenças nas suas idades e nas cores dos seus barretes. Se o significado das pérolas for compreendido, o resto será talvez mais fácil de explicar.

O FUTURO D. JOÃO II SOB A ÉGIDE DO INFANTE D. PEDRO
Reis (pais e avós) Inf. D. Pedro (avô e tio-avô) Futuro rei
João João
TRÊS GERAÇÕES
O SIGNO DA PÉROLA
A COROA FUTURA

O primeiro passo deve ser uma descrição objectiva: sobre um barrete vermelho fendido em duas metades (como se um espelho o dividisse), oito pérolas envolvem de forma circular uma pedra verde, tendo como suporte a única figura de grande dignitário eclesiástico presente nos painéis. O significado das pérolas é-nos transmitido ao longo de todo o políptico e a mensagem sobre a cabeça do jovem adulto é, na descrição simbólica que todo o resto da composição determina, a que passamos a descrever.

Um barrete dividido em dois – em duas metades que se espelham – indica a presença do seu possuidor dos dois lados do espelho; a diferença de idades dos jovens indica o sentido da passagem do tempo, do painel do passado (Leonor, Duarte, Isabel) para o painel do futuro (João II entre os humildes); as oito pérolas dispostas em círculo em torno da cor da Esperança, apontadas pela vara da figura central, simbolizam a coroa futura, e a figura eclesiástica que lhe serve de suporte, sacraliza-a.

Note-se que, como seria de esperar, apenas as oito pérolas finais sobre o barrete vermelho possuem o característico brilho nacarado sem qualquer equívoco ou ambiguidade: tanto a pérola do cavaleiro verde como as da mulher de vermelho e do jovem príncipe se encontram algo disfarçadas, através de um brilho ambiguamente cristalino no primeiro caso, vagamente metálico nos restantes.

A possível – e intencional – confusão de pérolas com pequenas esferas de cristal ou ouro nada subtrai, conforme já referimos, ao seu valor emblemático como símbolos de perfeição, e novamente aproveitamos a oportunidade para sublinhar o método de irresolução 📜 exaustiva e impedir a todo custo que ele passe despercebido, única forma de reintegrar o políptico das Janelas Verdes na prodigiosa ordenação que o fez nascer e explica os seus mistérios: nenhuma das restantes 56 figuras dos painéis exibe qualquer ornamento parecido com uma pérola ou longinquamente sugestivo de esfericidade sequer: apenas as figuras do infante D. Pedro, sua filha e seu neto ostentam ou são colocados sob a égide desse símbolo poderoso, cujo percurso se inicia em jeito de ordem esotérica de cavalaria pendente de um pescoço e se conclui em forma de coroa rodeando uma pedra verde sobre a cabeça de um futuro rei.

Mais uma vez, através do itinerário das pérolas familiares, a lógica da mensagem simbólica é avistada, acompanhada dos fracos disfarces que permitem a evasão sistemática. E assim, a omnipresença do disfarce metódico em toda a extensão do políptico nos permite avançar de novo, rumo à resolução da charada e à confirmação da sua origem.

Uma pérola para o cavaleiro verde de Alfarrobeira, que gerou a portadora da esmeralda; outra pérola sobre a cabeça do seu neto; e oito pérolas para o futuro Príncipe Perfeito na direcção em que aponta a vara de comando, dispostas em círculo como uma coroa à volta de uma pedra da cor da Esperança. Eis aí a cadeia simbólica que une o infante D. Pedro às duas representações de D. João II através das quais, conforme veremos no próximo capítulo, o Políptico da Esperança se estrutura e adquire sentido.

Se tudo não passar de coincidência, poderemos pelo menos concluir que nunca o acaso dispôs tantas pérolas de forma tão conveniente sobre tantos barretes estranhos, e agradecer ao arcebispo que se perfilou tão certinho na inacreditável sessão de pose colectiva que o pintor se terá limitado a reproduzir para agradar aos nossos adeptos do «por acaso» a todo o custo. E se as representações forem literais, que nunca como no séc. XV se usaram tantos barretes, não somente excêntricos mas estruturalmente inverosímeis, apesar dos lacinhos tranquilizantes...

A pérola em gestaçãoUm pequeno pormenor no esboço subjacente que se pode observar nos Novos Documentos (1994), confirma, por sua vez, o protagonismo simbólico das diversas coberturas de cabeça e seus adereços. Parece, com efeito, ter existido uma pérola em gestação no desenho preparatório, sobre o barrete que a figura de D. Pedro usa, exactamente como a que se observa sobre o príncipe João, seu neto, na pintura definitiva do painel dos reis. Numa fase posterior, a pérola desceria para o colar em torno do pescoço, para contraste com a cruz partida de D. Henrique, mesmo a seu lado, que surge igualmente apenas na fase de pintura e se encontra ausente do desenho inicial. Mais uma vez, uma pesquisa invulgarmente elaborada e complexa por parte dos autores do políptico é posta em relevo, confirmando os diversos estados sucessivos da charada que temos vindo a desvendar (1).

Se, por conseguinte, começámos a penetrar a mensagem fulcral da charada, muitos pormenores que não são necessariamente anómalos no visionamento inicial, mas adquirem uma significação súbita à sua luz, são revelados de forma coerente e completam o quadro da Esperança Futura. No último plano do painel dito «do Infante», a que antes chamámos «dos Soldados», como poderíamos agora chamar «do Reino Futuro», todas as figuras eclesiásticas visíveis envergam paramentos de cor verde, e a ligação da figura castanha do último plano, com o livro fechado debaixo do braço, ao soldado situado logo por baixo de si, faz-se através da emblemática cor castanha da gola deste último. Um barrete vermelho na sua cabeça apresenta o bordo inferior dobrado, como se a forma de o usar apontasse também o estatuto social sempre presente – barrete erecto para os cavaleiros, um pouco rebaixado e vermelho para o soldado da geração de Aljubarrota, amachucado e roxo para a geração de Alfarrobeira, e, finalmente, único integral, vermelho e erecto (2), o da dupla figura central. E este último, como veremos, parece adquirir um significado à primeira vista surpreendente – mas a surpresa pode não ser mais do que o choque da verdade com os nossos preconceitos.


NOTAS

1)  É interessante notar que as acentuadas diferenças de vestuário e adereços entre o desenho subjacente e a pintura final reforçam a tese de que a pintura foi efectuada sem a presença física das figuras históricas retratadas. Um dos mais absurdos argumentos contra a identificação de três gerações da casa de Avis no políptico é, na sua formulação mais ingénua (e factualmente errónea), o de que «não se poderiam ter pintado defuntos e ausentes», implicando algum impedimento misterioso ou então a simples ideia de que não poderiam existir outras representações prévias dos rostos (em pinturas, desenhos ou simples esboços) sobre as quais o pintor pudesse ter construído as suas próprias representações de corpo inteiro.

Ora, não só a existência de retratos familiares (bons ou medíocres, pouco importa) na posse da duquesa de Borgonha, bem como de seus sobrinhos ou outros exilados do período pós-Alfarrobeira, é provável, como os próprios moldes em que o políptico foi concebido não apontam senão nessa direcção! Note-se a forma como, por exemplo, as indumentárias dos quatro infantes do painel dos Cavaleiros e de D. Afonso V, mudam radicalmente do desenho subjacente para a pintura: não se trata aqui de retratados reais a trocar de roupa e acessórios à medida que o retrato avança, esgotando a paciência do pintor ao sabor dos caprichos de cada um deles, mas, muito mais provavelmente, da pura imaginação dos autores do políptico, inventando as representações e atitudes mais convenientes aos seus fins, com toda a liberdade, em torno dos rostos de figuras ausentes, com o auxílio de modelos corporais de recurso, no contexto de uma mensagem específica veiculada pela pintura global.

Ainda a propósito do argumento segundo o qual o engenho do autor da pintura teria de ser necessariamente tão reduzido como o dos seus intérpretes modernos, impedindo-o de representar personagens em idades que não coexistiram no tempo, não resistimos a mostrar um óbvio exemplo do contrário, oriundo precisamente da ambiência familiar da duquesa de Borgonha. Pietà familiarSão dados históricos bem estabelecidos que o casal ducal teve três filhos, o primeiro dos quais faleceu com pouco mais de um ano de idade e o segundo com quatro meses, ambos em 1432, tendo apenas o terceiro, nascido em 1433 e que viria a ficar conhecido como Carlos o Temerário, ultrapassado a infância mais tenra.

Observe-se pois o esquema que aqui reproduzimos de uma placa de bronze (c. 1446) onde figura toda a família ducal em oração. A placa comemora uma fundação religiosa da duquesa e a cena é uma Pietà acompanhada de dois anjos, e das armas e divisas do casal. De um lado da Pietà, podem-se observar, acompanhados de Sto. André, o duque Filipe e, atrás de si, Carlos, o filho sobrevivo, com cerca de 12 anos. Do outro, acompanhados de Sta. Isabel da Hungria, a duquesa Isabel e os dois filhos falecidos, identificados pelas suas armas inequívocas e representados por duas crianças em idades fictícias, obviamente superiores às idades reais com que faleceram. Note-se, aliás, a forma como nesta representação em que todos rezam, as crianças defuntas se distinguem dos vivos através das pequenas cruzes que seguram, lembrando o modo como no painel dos reis a mesma distinção é procurada: nesse caso através da posição de oração ou da ostentação de rosários, situações reservadas aos reis representados postumamente (D. Duarte, D. Leonor e D. Isabel) que os distinguem das figuras reais sobrevivas (D. Afonso V e o príncipe João).

Na previsão (fácil) do argumento seguinte, segundo o qual existiria algum estranho tabu permitindo afinal representar figuras ausentes e vivos ao lado de mortos, sim, mas apenas em placas de bronze, usamos uma imagem mostrando justamente uma cópia da referida placa executada à pena e sépia, o que tem a vantagem de responder igualmente ao curioso argumento segundo o qual existiriam impedimentos à representação de defuntos sob traços apenas aproximados, quando não existissem à mão retratos prévios fiéis. Quase poderíamos acrescentar que não se fazia outra coisa senão copiar, quando não mesmo inventar, feições aproximadas de personagens ausentes ou falecidas, dada a proliferação de retratos, e cópias genuinamente antigas de retratos, de figuras históricas identificáveis pelos seus contextos que chegaram até nós com diversos e contraditórios rostos...

Se a duquesa de Borgonha podia patrocinar representações dos seus dois filhos falecidos, em idades que nunca atingiram, ao lado de representações realistas de si própria, seu marido e seu filho sobrevivo, por que razão não haveria de poder encomendar uma representação dos seus cinco irmãos e figuras reais próximas de D. Duarte e D. Pedro, baseada em retratos prévios, num contexto simbólico em que vivos e mortos coexistem dentro de uma mensagem global com intenção certamente invulgar, mas também invulgarmente elaborada e precisa? Mais uma vez, a rota borgonhesa dos painéis parece fornecer modelos paralelos e explicações muito mais aptas do que as atribuições a supostos mestres portugueses, caídos das nuvens directamente sobre a corte de D. Afonso V...

2)  Note-se que a cor do barrete do infante D. João, no painel dos Cavaleiros, não é idêntica ao vermelho vivo do seu gibão ou dos restantes barretes vermelhos, mas antes um tom difícil de descrever, entre o carmesim e o acastanhado, e que todos os barretes verdadeiramente vermelhos se encontram no painel dos soldados ou sobre a cabeça da figura central. Mais uma vez, a irresolução 📜 sistemática só poderá ser integralmente avaliada através da contemplação directa das subtis tonalidades da pintura, impossíveis de reproduzir electronicamente de forma satisfatória. Recordemos a subtil gradação das cores ao longo dos diversos painéis e nomeadamente as tonalidades do chapéu da rainha D. Isabel, apenas susceptíveis de cabal apreciação in loco.