CAPÍTULO VII (CONTINUAÇÃO) AS TRÊS CORES VIVAS |
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NEGRO E ROXO |
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Considere-se, em primeiro lugar, a cor, que temos vindo a referir como negra, do chapéu da rainha D. Isabel. A observação de tons arroxeados, especialmente nos seus prolongamentos, é igualmente possível. Não há nenhum outro chapéu similar com iluminação diferente que nos ajude a determinar a sua cor exacta (recorde-se a forma como a iluminação de uma das brigandinas dos soldados nos sugere discretamente a cor da outra), e quer o consideremos negro ou roxo, ficamos sujeitos à contestação através da hipótese oposta.
A verdade é que a sugestão de veludo negro é forte, mas os reflexos roxos estão igualmente presentes de uma forma muito discreta, e ajustam-se de forma apta à rede do simbolismo geral: a mãe do futuro D. João II é obviamente conotada de forma positiva, e o negro indicativo do luto (como para D. Duarte e para o infante D. Fernando) serve de contraste com a coifa branca de D. Leonor, à qual se sobrepõe de maneira deliberada e agressiva. Mas o roxo da mortificação, sugerido quase subliminarmente, é também adequado para a filha de D. Pedro, que procurou intervir em favor do pai até à data de Alfarrobeira e conseguiu a sua reabilitação depois disso, mas apesar de tudo partilhou o seu leito com um homem que, se não foi responsável único e deliberado pela morte do ex-regente, foi pelo menos suficientemente ingénuo para dar cobertura ao conflito iniciado pelo círculo do duque de Bragança e do conde de Ourém. E, tal como nos barretes dos soldados a cor roxa é atenuada pelos pequenos dourados que recompensam a tristeza dos simples, o tom arroxeado do chapéu da rainha vermelha é, também ele, atenuado pelo duplo «M» indicativo do martírio, lembrando a sua vida curta e trágica, e o seu provável envenenamento pelos inimigos do seu pai.
Talvez o pintor tenha desejado precisamente que o negro e o roxo possam ser ambos defensáveis, e o roxo lhe tenha sido particularmente útil por permitir a alteração gradual da cor do chapéu até à orla azul que confronta o rosário. Que outro significado poderá ter um chapéu negro que se torna roxo e acaba azul nos seus prolongamentos, de modo tão conveniente e concordante com a codificação global?
ROXO E OURO |
A segunda objecção instrutiva, que mais uma vez nos coloca na espiral das pistas e contra-pistas espalhadas por todo o políptico, consiste no facto dos dois barretes roxos dos soldados em primeiro plano não estarem ambos decorados com elementos dourados iguais. Porquê uma medalha suspensa de um deles e uma fiada de pequenos ornamentos redondos (mais uma representação de barrete sem paralelos iconográficos conhecidos) ao longo do outro? Porque não uma única pequena medalha em cada um, por exemplo, já que as vestes e a distribuição das cores parecem apontar uma intenção de igualização das figuras?
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A resposta deverá ser a seguinte: as figuras dos dois soldados são extremamente parecidas, mas não podem ser absolutamente idênticas, já que existe em todo o painel uma hierarquização tendente a destacar um deles como primeiro entre iguais, através até do gesto da figura central que exibe a vara de comando (1); e a estranha fiada de pequenos discos dourados num dos barretes roxos torna um pouco mais difícil – embora não se trate de botões, nem o barrete tenha quaisquer costuras visíveis ou outras sugestões de ser feito de partes distintas – provar que o barrete verde com botões, e o barrete vermelho com laços, dos dois jovens que se espelham nos painéis centrais, sejam os dois únicos barretes compósitos do mundo...
Veremos mais adiante por que razão a originalidade única desses dois barretes divisos e a ponte que eles estabelecem entre os seus detentores (e os dois painéis centrais em que se situam), são necessárias ao último passo da decifração da charada. Por agora, interessa-nos apenas sublinhar aquilo que desde o início apontámos como o método por excelência da ocultação: mais uma vez, a irresolução 📜 sistemática se introduz e deverá ser bem recebida pelos que a prevêem como confirmação e prova do labiríntico cruzamento de pistas. Como seria de esperar (e é este o dado eloquente), o barrete roxo com os pequenos discos dourados situa-se exactamente entre os dois barretes compósitos – esses sim significantes, conforme veremos mais adiante – como as duas espadas com cintos enrolados enquadravam a espada e o cinto significante do infante D. Henrique.
Observe-se bem, no quadro que se segue, a analogia dos disfarces metódicos em emboscada, à espera do ponto de vista míope que, não tendo por hábito procurar muito longe ou com muita acuidade, necessita de contra-exemplos próximos e bem óbvios para poder ripostar à análise que procura justamente o que está disfarçado ou ambíguo. Do mesmo modo que dois cintos se enrolavam prosaicamente em bainhas de espadas, sem qualquer sugestão de mistério ou anomalia (2), mas na vizinhança imediata do cinto do infante D. Henrique – esse sim, bem sugestivo da intenção de confundir um simples enrolamento de dificíl percepção com uma impressão primeira e imediata de cinto pendente, desarrumado e imperfeito – temos agora um barrete com pequenos discos decorativos sugerindo que, afinal de contas, talvez os dois barretes compósitos na sua vizinhança imediata não sejam únicos nem particularmente significativos de alguma correspondência entre as figuras que os envergam...
No entanto, o barrete roxo com os pequenos discos dourados não transmite minimamente, e ao contrário dos seus dois vizinhos, a ideia de divisão (recorde-se a preocupação do pintor em mostrar o barrete verde com dois dos seus botões desapertados (3), mostrando assim o seu carácter compósito), exactamente do mesmo modo que nenhuma das duas espadas que enquadram a do infante D. Henrique sugere alguma segunda leitura para o óbvio enrolamento do seu respectivo cinto em torno da sua bainha. E nem num caso, nem no outro, poderemos encontrar mais alguma representação similar ao longo de todo o políptico: tanto o cinto enrolado do infante D. Henrique, como os barretes compósitos dos dois jovens que se espelham nos dois painéis centrais, parecem funcionar como magnetes e atrair a si a totalidade dos objectos que lhes são vagamente similares!...
DOIS EXEMPLOS DE PISTAS E DESPISTAGENS | |
BARRETES INVULGARES | CINTOS ENROLADOS EM BAINHAS |
1 - Barrete compósito unido por botões (pista) | 4 - Enrolamento obscuro com fivela e furos ilusivos (pista) |
2 - Barrete compósito unido por laços (pista) | 5 - Enrolamento claro sem fivela nem furos (despistagem) |
3 - Barrete decorado mas indiviso (despistagem) | 6 - Enrolamento claro sem fivela nem furos (despistagem) |
O leitor que não absorveu, ou absorveu com relutância, a técnica permanente de irresolução 📜, admirável de astúcia mas inevitavelmente exposta através da constante repetição que desafia os limites do credível, fará bem em ponderar as duas ocorrências de proximidade providencial acima descritas. Se para tal tiver tempo e paciência, poderá até convocar algum estudioso literalista e verificar in loco, diante do políptico, que o funcionamento das constantes despistagens pré-preparadas continua a funcionar às mil maravilhas, mais de cinco séculos depois da concepção da charada e dos álibis que até hoje a acompanham, constituindo a sua melhor cortina de protecção.
O enquadramento das pistas verdadeiras pelas desculpas ingénuas colocadas mesmo a seu lado, mostra pois que o autor da charada continuou a recear que o ponto de vista tímido e literal, tão necessário à sobrevivência da sua mensagem, não tivesse sequer a iniciativa de ir procurar muito longe. Uma nota humorística, a par do significado familiar e político inegável e da própria natureza lúdica da charada, faz aqui uma aparição detectável. Não será a última vez, como teremos oportunidade de ver... |
1) Semelhante hierarquização é patente também nas atitudes dos próprios soldados: na forma de ajoelhar (um único joelho em terra tem um estatuto mais digno do que ambos) e até na própria ideia de proteger (leia-se «dignificar», se melhor se quiser entender o passado cavaleiresco) os joelhos da figura protagonista com peças de armadura. A diferença entre «estar de joelhos» sobre os dois joelhos, e «ajoelhar» com um único joelho em terra, é aliás detectável também na figura de D. Afonso V, que no desenho preparatório subjacente à pintura se encontrava de joelhos sobre os dois, e na pintura final ajoelha de forma mais dignificada sobre um único. Mais adiante teremos oportunidade de abordar as razões que explicam essa mudança de representação.
2) Note-se que, se bem que os dois cintos enrolados em bainhas que enquadram o cinto emblemático do infante D. Henrique não suscitem qualquer equívoco de natureza visual, eles possuem todavia pequenas decorações redondas de ouro que criam um efeito de desalinhamento semelhante ao dos furos. Toda a diferença reside, claro está, no facto de nenhum desses dois cintos ser acompanhado de furos visíveis em aparente desalinho, susceptíveis de o fazer aparecer como um cinto imperfeito, nem de uma fivela em posição tal que crie uma ilusão de cinto pendente em vez de simplesmente enrolado em torno de uma bainha. Ou seja: pequenas decorações redondas de ouro num barrete servem para distrair dos botões e laços autênticos em dois outros barretes, como pequenas decorações redondas de ouro em dois cintos servem para distrair dos furos autênticos em aparente desalinho noutro cinto. A repetição dos estratagemas de despistagem é, mais uma vez à luz da irresolução 📜 permanente, a melhor pista que poderíamos invocar para fazer ver o que não está imediatamente visível.
3) Mais uma vez, a análise que pretenda esgotar os artifícios evasivos presentes na pintura, corre o risco de se perder em considerações marginais se não as remeter para notas como esta. E os artifícios sucedem-se como as camadas de uma cebola: no caso vertente do barrete verde, considere-se o fio de ouro cosido perpendicularmente às fiadas verticais de botões e observe-se que se situa exactamente acima dos dois que estão desapertados, gerando assim uma nova possibilidade de recuo. Ao observador curioso que compreendeu que os botões estão desapertados para confirmar a suspeita do carácter compósito do barrete e o aproximar do seu congénere simétrico com alguma intenção ulterior, poderá agora o ponto de vista oposto contrapor que a divisão cessa à altura do fio dourado horizontal, sendo que daí para cima estaremos pois em presença de botões apenas decorativos. Como tantas vezes antes, a fraqueza do argumento evasivo reside no não-registo do carácter rebuscado e complexo de objectos estranhamente peculiares, concebidos como ambivalentes, que se pretendem integrar no conjunto sem quaisquer explicações para as suas mais que notórias peculiaridades. No entanto, note-se ainda a forma discreta como a ausência de botões inferiores ao fio, na fiada frontal, serve para reforçar que também aqui estamos em presença de um barrete interpretável como composto de duas metades, como o seu congénere vermelho, e não de quatro quartos de barrete. Enquanto o extraordinário barrete vermelho é unido pela banda escura inferior e pelo conjunto de laços, o não menos estranho barrete verde adquire estrutura através do fio dourado e dos botões. Nunca será demais salientar que barretes compósitos com aspecto semelhante a algum destes dois, jamais foram avistados em qualquer representação iconográfica coeva.