CAPÍTULO IX A PEDRA VERDE |
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Se dissermos ao leitor, sem qualquer outra explicação, que o pintor espalhou pela sua obra uma pista feita de pérolas que conduz a uma pedra verde, e que nessa pedra verde está escondido o nome do políptico, brilhando com a cor da Esperança sobre a cabeça do Príncipe Perfeito, o resultado pode ser duplo. Arriscamo-nos a perder a companhia dos poucos verdadeiros cépticos, isto é, daqueles que compreendem que a razão é a única arma de que dispomos, e que qualquer outro meio de conhecimento pode talvez vir por acréscimo, mas não por oposição; e por outro lado (ai de nós!), começaremos a despertar o entusiasmo dos que, aborrecidos, nos acompanharam até aqui, mas preferem as cabazadas de milagres de que resulta um certo estado de incompreensão beatífica, muito em voga nas aproximações místicas aos painéis. Os borrões de cor que por vezes se avistam não dispensam, porém, o recurso à tinta-da-china para delinear a sua mensagem. Para evitar ambos os males – a retirada dos cépticos e a invasão dos beatos – impõe-se um prólogo que terá de ser um pouco longo, mas nos conduzirá a penetrar o labirinto da Pérola, e a alcançar o tesouro que ele encerra e se chama Políptico da Esperança.
CRIADORES DE IMAGENS |
A ideia de que a Europa medieval deve ser estudada e entendida através das aproximações que catalogam o comércio, as condições económicas, as movimentações sociais ou os confrontos políticos, e procuram novas vias de investigação nos balanços exaustivos de todas as possíveis documentações em arquivos obscuros, é imprescindível. Mas existe o risco de a tornar exclusiva, forçando um historicismo quantitativo que perde de vista a importância da acção individual no drama permanentemente renovado de cada existência humana. O que pretendemos dizer é que são os dados de natureza cultural e psicológica que nos devem servir para compreender as acções e comportamentos individuais, muito mais que as generalizações sociológicas ou economicistas.
Pretender à partida, por exemplo, que para compreender o políptico das Janelas Verdes devem ser procuradas apenas identificações «fotográficas» e documentações externas, sem qualquer alusão aos mistérios que o rodeiam e à importantíssima lógica interna da obra, sob o pretexto – frequentemente invocado – de que os pintores medievais eram simples artífices, tecnicamente muito competentes mas incapazes de grandes voos imaginativos, é uma atitude muito arrogante por parte de alguns dos seus estudiosos modernos. Se os pintores do séc. XV eram capazes de imaginar aquilo que qualquer criança pode hoje observar – mesmo sem compreender significados – no labirinto simbólico do políptico (uma pérola de cristal ou uma cruz partida, por exemplo, ou duas mangas femininas desiguais), enquanto os estudiosos recusam até o simples registo das anomalias (1), por que razão haveriam os primeiros de pedir autorização aos últimos para a altura dos seus voos?
Um pintor como Jan van Eyck, algumas décadas antes da criação do políptico, era notório não só pela revolução que o seu virtuosismo «artesanal» representava, mas também pela visão e imaginação das suas pinturas. Frequentava a corte ducal borgonhesa de Filipe o Bom, e foi incumbido pelo mesmo de várias missões diplomáticas, uma das quais consistiu na visita a Portugal, onde pintou dois retratos da filha de D. João I e futura mulher do duque.
Jan van Eyck gostava de incluir em letras gregas nos seus próprios retratos familiares a sua divisa «Als ich kan», que representava possivelmente um jogo de palavras entre o seu nome e a frase «Conforme posso» (conforme Eyck pode). As suas pinturas estão repletas de inscrições para nós misteriosas em grego ou latim, de intrigantes objectos simbólicos, de truques e adivinhas que permitem pressentir o espírito imaginativo e lúdico do apogeu medieval borgonhês por trás do «artesão» capaz de pintar reproduções perfeitas da realidade. Nelas, superfícies espelhadas reflectem a imagem do próprio pintor, enquanto palavras em caracteres góticos invertidos saem da boca das suas virgens para sugerir que são dirigidas ao céu, e numa obra como o retábulo do Cordeiro Místico de Gand onde, sob a égide de sibilas e profetas, toda uma multidão se organiza em grupos disciplinadamente coerentes em torno da representação divina, respira-se uma esquematização geométrica que mostra como o espírito de rigor lógico pode acompanhar e estruturar a riqueza imaginativa.
Apenas a título de exemplo, citemos um dos seus quadros, conhecido por Retrato dos Esposos Arnolfini, que se encontra de tal forma repleto de codificações simbólicas, que nem mesmo as leituras modernas as conseguem ignorar por completo. Imagine o leitor o retrato de um casal em que o homem – de expressão sombria – levanta a mão direita (um dos pormenores mais trabalhados e alterados pelo pintor a partir do esboço subjacente, em busca da posição ideal, conforme revela o exame infra-vermelho), num gesto que parece propositadamente ambíguo 📜 mas muito semelhante a uma expressão de repreensão, uma vez que a sua mão esquerda segura, em vez de entrelaçar, a mão direita da mulher. Esta assume uma expressão submissa e levanta o vestido sobre o ventre dilatado (um gesto convencional que na iconografia religiosa pode representar a gravidez). Em torno das duas figuras, numerosos pormenores parecem veicular alguma mensagem não imediatamente óbvia. Perto de um leito encontra-se uma imagem de Sta. Margarida, patrona dos nascimentos e das parturientes. Uma vela de um enorme candelabro continua a arder em pleno dia. No chão, dois pares de sapatos, masculinos e femininos, apontam em direcções diferentes. Um cão (um símbolo de fidelidade) desaparece, como por magia, num pequeno espelho côncavo que reflecte todo o resto da cena, incluindo dois observadores misteriosos que lhe são exteriores, no limiar de uma porta. Numa parede encontra-se em enormes letras a seguinte legenda em latim: «Johannes de eyck fuit hic 1434» (João de Eyck esteve aqui 1434). Um inventário de 1700 refere que o quadro possuía originalmente uma moldura com versos de Ovídio descrevendo como um casal se enganava mutuamente (2). Um outro quadro atribuído a Jan van Eyck, hoje perdido mas conhecido através de referências antigas e da sua figuração num terceiro quadro mais recente (3), mostra o mesmo local e uma mulher, que parece ser a mesma, completamente despida numa cena sem sugestões bíblicas (uma representação pouco vulgar na época) nem a presença masculina.
Curiosamente, o ano de 1434 inscrito na pintura é também o do nascimento de um primeiro filho do pintor, e pouco mais se sabe. Jamais conheceremos a história completa do retrato, ou os relacionamentos precisos das figuras nele envolvidas, mas compreende-se que aqueles estudiosos modernos de pintura que nunca leram, por exemplo, as Cent nouvelles Nouvelles e não compreendem que nem tudo o que podia ser pintado era necessariamente santo e hierático, sigam de perto a conhecida interpretação de Erwin Panofsky e concluam tratar-se simplesmente de uma pintura com o valor de um documento legal, representando uma cerimónia de casamento que o pintor teria testemunhado, assinando numa parede dentro da pintura, qual notário improvisado, e dizendo que sim senhor estava lá, mas sem qualquer referência ao carácter da «cerimónia matrimonial» testemunhada, ou à identidade ou estatuto de qualquer outra testemunha assomando à porta do quarto. Assim se explicariam os pares de sapatos espalhados pelo chão (o local do «matrimónio» seria considerado sagrado, e apesar de o homem manter o enorme chapéu na cabeça, ambos os esposos se descalçariam como muçulmanos numa mesquita) e a mão esquerda que o marido estende à esposa (o casamento seria morganático, embora o que se conhece do presumível casal representado sugira exactamente a relação morganática inversa, que implicaria a troca das mãos de ambos os cônjuges). Quanto à subtil pesquisa posicional da mão ambiguamente erguida, ao pormenor de o pequeno cão não ter imagem no espelho, aos versos de Ovídio sugerindo «enganos mútuos», ao retrato de uma mulher nua (que não parece inserir-se em algum contexto bíblico), no mesmo local num segundo quadro de Jan van Eyck, levam normalmente o destino das mangas desiguais do painel do Infante e do buraco negro do painel dos Frades...
Serve este apontamento, não para fornecer uma interpretação acabada do Retrato dos Arnolfini, mas sim para tentar transmitir ao leitor a proximidade da charada das Janelas Verdes – com a sua própria coerência interna elaborada em extremo e não imediatamente transparente ao observador casual – a exemplos nórdicos de características análogas e problemáticas na tradição eyckiana, e o seu afastamento notório do que se considera a restante pintura portuguesa coeva, aliás quase inexistente.
As novas concepções de pintura laica iniciadas pelos primitivos precursores de Jan van Eyck, já acompanhado na sua época por outros mestres inovadores que se influenciavam mutuamente, representaram, durante o séc. XV na Flandres dos duques de Borgonha, uma verdadeira revolução na pintura europeia, que fala por si e dispensa as tentativas de reduzir a história da arte à investigação do estatuto social dos pintores. E se apenas o estatuto social interessasse, não estariam muitos deles – como o próprio Jan van Eyck no seu tempo e, por exemplo, van der Weyden ou Memling pouco depois – muito mais próximos da condição de burgueses ou nobres prósperos e cultos, muitas vezes intimamente ligados à casa ducal, como foi o caso do próprio Jan van Eyck, que da de modestos artífices desprovidos de cultura como pareceram por vezes pensar os estudiosos do misterioso fenómeno gonçalvista?
A dificuldade em reconhecer a tremenda imaginação, o gosto pela sistematização lógica, o espírito lúdico presente nos simbolismos complexos tão característicos dos prodigiosos pintores activos nos domínios do duque de Borgonha, nos painéis atribuídos a Nuno Gonçalves, tem talvez uma causa subconsciente que se poderia traduzir assim: «seria legítimo considerar a cultura, a largueza da visão, o papel da imaginação romanesca e criativa nos pintores ligados ao serviço da casa ducal de Borgonha, mas não nos artesãos que trabalhavam para D. Afonso V, fundando uma misteriosa escola de pintura (4) que nasceu por geração espontânea – a famosa escola de Nuno Gonçalves de que não são conhecidos outros nomes – e parece ter desaparecido como por encanto. Logo, não pode ser registada a presença de uma complexa charada intencional no políptico das Janelas Verdes, uma vez que os tais "simples artesãos" portugueses não parecem ter reunido características muito originais e muito menos ainda revolucionárias».
E a verdade é que enquanto em Portugal o vácuo em torno do pretenso mestre Nuno Gonçalves é completo, tanto antes como depois da sua diminuta suposta actividade que teria passado praticamente despercebida no seu próprio tempo, na Flandres e restantes territórios borgonheses os grandes mestres e as obras-primas são às dúzias, e a influência das suas ideias nas gerações imediatamente sucessoras é mais que notória. Por exemplo: dez ou vinte anos depois da data de realização do políptico, Bosch – um dos mais imaginativos pintores de sempre – encontra-se activo no território do Brabante, enquanto em Portugal parece ter desaparecido qualquer vestígio da passagem meteórica do prodigioso Gonçalves. A lógica surda é portanto a seguinte: se os painéis foram encomendados por D. Afonso V e realizados pelo seu artesão de serviço, é lícito apreciar a capacidade técnica deste último, referir as suas viagens – sem testemunhos nem vestígios documentais – pelo norte de Itália (de onde consta que trouxe os croquis das armarias) e pela Flandres (onde parece que aprendeu a misturar as tintas), mas nunca a sua imaginação e lógica charadística peculiares, nunca o característico fulgor da ambiência borgonhesa combinado com o rigor simbólico dos pintores flamengos, que reconhecidos na mente e no pincel do «artesão», o afastariam definitivamente da cena portuguesa.
Ao que parece, se a imaginação e a lógica de charada nos painéis de Nuno Gonçalves não parecem evocar em nada a interiorização e ausência de elaboração simbólica original dos pouquíssimos exemplos conhecidos de possível pintura portuguesa sua próxima no tempo, isso não prova que sejam estrangeiros; prova que não se deve olhar para eles, e se deve falar o menos possível desse ângulo do problema...
A comparação do políptico dito de S. Vicente com uma obra como o «Ecce Homo» do Museu das Janelas Verdes, que hoje se sabe não poder ser anterior ao ano de 1567, notável pelas razões inversas – pela sua concepção despojada e reduzida ao mínimo, onde os próprios olhos da única figura representada são escondidos – pode ser útil para contrastar o simbolismo eyckiano elaborado, lógico, rico de significados e dirigido ao intelecto, com a comunicação emotiva, simples e directa, que se costuma designar por «pathos».
A autoria do «Ecce Homo» de Lisboa é desconhecida e a sua época é outra, mas se o compararmos com as presumíveis tábuas sobreviventes da série dos suplícios de S. Vicente atribuídas ao próprio Nuno Gonçalves e as quatro figuras solitárias de santos frequentemente atribuídas a ele ou à sua «escola», poderemos observar a semelhança conceptual entre todas essas obras. As pinturas da «escola» exteriores ao políptico dos seis painéis apresentam uma contenção e simplicidade de meios (ausência dos torturadores nos painés dos suplícios e sinais muito discretos dos mesmos suplícios, por exemplo, como se só a figura do santo interessasse e tudo o resto fosse supérfluo) que as aparenta muito mais facilmente ao Cristo solitário e sofredor que nada oferece à nossa leitura para além do «pathos» imediato, que à quase inacreditável profusão de pormenores, sugestões e armadilhas dos seis painéis do políptico, enquadrados num simbolismo intelectualizado e de laboriosa interpretação, desprovido de imediatismo e sem qualquer paralelo, por mais remoto que seja, com a escassa (ou inexistente) pintura portuguesa de finais do século XV.
Não significa isto, naturalmente, que esqueçamos o grande número de pinturas nórdicas semelhantes ao «Ecce Homo» de Lisboa. Nem significa tão pouco que não existam inúmeras representações de figuras isoladas de cristos ou santos sofredores na pintura flamenga. Mas significa, isso sim, que o políptico dito de S. Vicente se situa muito mais claramente na tendência eyckiana da mais enigmática pintura dos países baixos borgonheses, na linha directa do famoso pintor dos retratos perdidos de Isabel de Portugal, que deixou numerosos sucessores, muitos dos quais bem conhecidos, e influenciou como poucos a pintura da sua época e o gosto da corte ducal em cujo seio se movia, do que nalguma ordem conceptual ou estilística conforme com as outras pinturas da «escola de Nuno Gonçalves», muito possivelmente pintadas à volta do políptico num tempo que lhe é posterior, exibindo algumas proximidades pontuais (lajes do chão, relativa semelhança de feições do santo supliciado com a figura central do políptico), mas praticamente nenhuma similitude para além disso. Nada pode ser mais eloquente do que a comparação da pobreza imaginativa dos «suplícios de S. Vicente» com a exuberância simbólica, convidando a uma ponderação necessariamente cerrada e laboriosa, dos seis painéis do políptico, um todo completo em si mesmo e na sua mensagem.
Parece pois bem mais lícito admitir a hipótese de o políptico se ter mantido misterioso por ter sido pintado na Flandres como encomenda da duquesa Isabel, e até de a sua dupla figura central poder ter desembarcado em Lisboa com uma identificação intencionalmente ambígua, do que confiar na atribuição a Nuno Gonçalves por Francisco de Holanda que, oitenta anos depois, se pode ter limitado a procurar o nome do principal pintor ou mestre-de-obras de D. Afonso V, sem mais preocupações, para explicar a autoria de um retábulo a cuja descrição, de resto, não procede em parte alguma.
A sua ausência de conhecimento exacto acerca do pintor deveria aliás arrepiar aqueles dos nossos historiadores da arte que proclamam aos quatro ventos acreditar exclusivamente em rigorosas metodologias científicas, para logo a seguir nos confiarem que «ciência» para eles é a crença absoluta em Francisco de Holanda, como se todas as dúvidas remanescentes fossem redutíveis a vagas superstições ignorantes. No entanto, na mesma obra em que refere Nuno Gonçalves, Holanda multiplica os sinais de um escasso conhecimento da pintura e iluminura flamengas: começa por indicar o seu próprio pai, António, à cabeça dos cinco maiores iluminadores da Europa, e a ambivalência do seu conhecimento preciso é indicada pela inclusão do autor do retábulo de S. Vicente entre os vinte e um «águias da pintura» que enumera e identifica o mais claramente que pode, sem contudo indicar sequer o nome do suposto português («o pintor português ponho entre os famosos que pintou o altar de S. Vicente»), como se a nacionalidade devesse ser para ele mais evidente que o nome, indicado de passagem uma única vez, noutro local e num contexto parcialmente especulativo (5). O único «águia» português da lista expressamente destinada a preservar nomes merecedores de memória futura, triunfo da pintura nacional coroando o vácuo absoluto de nomes portugueses nesse domínio repleto de estrangeiros devidamente identificados, não merece mais que um olhar oblíquo – e uma identidade mencionada en passant noutro local completamente distinto – e sobre esta referência repousa a reputação de Holanda como o maior dos conhecedores de Nuno Gonçalves, uma posição de resto pouco disputada!...
A hipótese de o políptico se dever à iniciativa da tia de D. Afonso V, encerrando em si uma dupla intenção, não explica só as intenções e referências pedristas, e a sua dissimulação na charada. Explica, além do mais, o conteúdo artístico, o espírito de empresa em que a obra é concebida e o seu universo interior sublimado em termos do ideário da Cavalaria, tão dificilmente captável pela maioria dos nossos historiadores da arte modernos, tantas vezes mais apreciadores das delícias sufocantes das talhas douradas barrocas com seus cortejos de santos de olhos retorcidos e anjinhos reboludos, que da pureza de desenho e cor das iluminuras medievais. Já alguém disse isto mesmo e – segundo cremos – quase exactamente nas mesmas palavras, mas não há muitas maneiras de patentear preconceitos com amabilidade, e a melhor apresenta-se espontaneamente...
As actuais leituras dos painéis ditos de S. Vicente
podem ser ilustradas com a seguinte analogia: tudo se passa
como se um romance de cavalaria, elaborado à volta
de figuras históricas reais, mas repleto de alegoria e imaginação,
fosse tomado por uma crónica rigorosa, e às diversas tentativas
de classificar dragões e grifos em termos zoológicos, árvores
luminosas em termos botânicos, espadas que falam – e já agora,
capacetes mágicos – em termos de armaria verídica, sucedesse
naturalmente um silêncio comprometido e desejoso de evitar a discussão.
A presença de figuras históricas é logicamente pressentida,
mas não se reconhece a rede de pesca fabulosa, os livros alegóricos,
as espadas consubstanciais dos seus detentores, a cruz partida, a pérola
de cristal simbólica, as ordens projectadas nas imagens dos cavaleiros,
a mágica inicial luminosa de «Miriam». O resultado
das tentativas de discutir símbolos e alegorias em termos literais
é naturalmente a fé redobrada nos milagres de S. Vicente,
uma forte relutância em iniciar sequer qualquer debate interpretativo
dos painéis que os examine simultaneamente no pormenor e no conjunto,
e um certo embaraço.
Mas embaraço porquê? Interpretações erróneas ou incompletas em torno de um objecto concebido precisamente como uma charada feita de penumbras e potenciais equívocos são compreensíveis e inevitáveis, salientam a necessidade do debate aberto, e apontam a verdadeira abominação na atitude dos que se acolhem à sombra protectora do grande chapéu negro que tapa a visão e dispensa a análise crítica. E assim, neste reino da miopia que não se cansa de inaugurar estátuas trocadas à sombra de bandeiras que não enxerga, talvez possamos iniciar o último ciclo de descobertas que, depois de mandar a escola de Nuno Gonçalves fazer companhia à Escola de Sagres e restantes mitos pseudo-históricos sem fundamento, forçará o poder a tirar o seu chapelão à Dama do Espelho e a deixar de repetir ad nauseam a improcedência da confrontação dos infantes seus irmãos no vértice histórico de Alfarrobeira. |
1) Com excepção do espaço negro que é impossível de ignorar, e dá azo a referências ocasionais, por vezes um pouco embaraçadas, por parte dos adeptos da tampa de caixão (com o resto do caixão por carbonizar e do outro lado do políptico), do tronco dos cativos com olhais de madeira (em vez de metálicos por onde fazer passar as correntes), da cruz (sem braços), do leito de pregos (sem pregos) e sabe-se lá de que mais…
2) A moldura perdeu-se e não se conhecem os versos exactos, mas, segundo Linda Seidel (1993), pág. 178 (idênticas referências a págs. 95-96), o seu tema consta do próprio inventário:
"Mary of Hungary had had the painting sent to Spain in the midsixteenth century, soon after the inventory of her collection was made; that accounts for its presence at the Alcázar in Madrid. An inventory made of the holdings there in 1700 describes a panel, apparently ours, on which is depicted a pregnant 'german' woman, dressed in green, giving her hand to a young man whom she marries by night [uma observação motivada sem dúvida pela vela que no candelabro arde simbolicamente, embora a luz do dia entre pela janela]. The panel is described as having wooden doors painted to look like jasper; these close. The wood frame of the picture is said to be gilded; on it are inscribed verses from Ovid that tell how the couple deceive each other [note-se como, já em 1700, em Espanha, uma cena colocada sob o signo de um «casal que se engana mutuamente» é tomada, apesar disso, por uma cerimónia matrimonial...]. Inventories of the Spanish collection from the second half of the eighteenth century refer to a painting of a man and a woman holding hands; they give the name of the artist as "Juan de Encima inventor de la pintura al oleo" [clara referência a Jan van Eyck], but do not mention any inscription. It is argued that a famous fire in the Alcázar in 1734 may have contributed to the destruction or removal of the frame [uma forte improbabilidade, dada a proximidade da frágil pintura à sua própria moldura; mais provavelmente a moldura terá simplesmente sido substituída devido ao seu envelhecimento ou inconvenìência da mensagem nela inscrita]".
3) Apesar de o quadro de Jan van Eyck se ter perdido, existem diversas referências a ele que permitem identificar a sua reprodução sob a forma de um dos pequenos quadros na parede da Visita do Arquiduque Alberto à Galeria de Arte de Cornelius van der Geest (1628) por Willem van Haecht, na Rubenshuis, Antuérpia. Existe ainda uma pequena cópia, de fraca qualidade, do original eyckiano no Museu de Arte Fogg da Universidade de Harvard.
4) Todos parecem concordar com a existência de um mistério: deve-se, ao que parece, à imprevisibilidade do génio isolado que aparece do nada e a ele regressa sem quase deixar rasto ou seguidores (em Portugal, porque na Flandres os «Nunos Gonçalves» cresceram como cogumelos na esteira dos grandes mestres primitivos...).
5) As duas menções de Francisco de Holanda ao pintor do retábulo de S. Vicente da Sé de Lisboa, em Da Pintura Antiga, datam de 1548 e merecem, desde já, um exame contextual mais detalhado:
FRANCISCO DE HOLANDA, DA PINTURA ANTIGA, 1548 |
No livro I, capítulo XI, depois de contrastar os méritos artísticos da antiguidade greco-romana e do «tempo velho» mais recente, e de nos dizer que, nos seus dias, só em Itália é que se sabe pintar, faz uma primeira referência ao pintor do retábulo:
«E o que hoje se pinta, onde se sabe pintar, que é somente em Itália, podemos lhe chamar também antigo, sendo feito hoje em este dia. E neste capítulo quero fazer menção de um pintor português que sinto que merece memória, pois em tempo mui bárbaro quis imitar nalguma maneira o cuidado e a discrição dos antigos e italianos pintores. E este foi Nuno Gonçalves, pintor del-rei D. Afonso, que pintou na Sé de Lisboa o altar de S. Vicente, e creio que também é da sua mão um Senhor atado à coluna que dois homens estão açoitando em uma capela do mosteiro da Trindade».
A outra referência ao «pintor do altar de S. Vicente» é muito interessante porque ocorre no seio de uma lista que visa expressamente preservar nomes para a posteridade. Holanda estabelece, no fim da obra, várias listas de grandes artistas europeus, por actividades artísticas, ordenando-os por mérito decrescente (por vezes hesitando sobre as precedências que estabelece, ou colocando vários nomes ex-aequo). A encerrar as listas, torna bem claro que a sua razão de ser é a preservação da memória, e não satisfeito com os dados que conseguiu apurar, solicita a quem souber mais e melhor que acrescente ou corrija, sinal evidente de que tenta veicular uma informação tão completa quanto lhe é possível:
«Estes são os claros homens que em Europa floresceram na pintura e escultura e arquitectura em os nossos tempos. E porque conheço o grande perigo do repartir honras e lugares, peço a quem o melhor entender que, se sabe de outros mestres mais famosos, que os ponha em seus lugares e emende o que eu não soube melhor eleger nem acertar. Mas pareceu-me conveniente ajuntar a este livro sua memória, a qual viverá alguns anos».
Para que o leitor possa julgar, indicamos a seguir as seis listas. Reproduzimos a vermelho as considerações que Holanda tece acerca de cada um dos listados de que não indica o nome. As restantes entradas são, para não nos alongarmos inutilmente, assinaladas pelo nome expressamente citado, sem transcrição das considerações respectivas sobre cada artista quando irrelevantes para os nossos fins.
«PINTORES MODERNOS A QUE ELES CHAMAM ÁGUIAS» [19 nomeados em 21]:
«FAMOSOS ILUMINADORES DA EUROPA» [4 nomeados em 5]:
«FAMOSOS ESCULTORES DE MÁRMORE» [9 nomeados em 10]:
«FAMOSOS ARQUITECTOS MODERNOS» [7 nomeados em 7]:
«FAMOSOS ENTALHADORES DE LÂMINA DE COBRE» [5 nomeados em 9]:
«FAMOSOS ENTALHADORES DE CORNÍOLAS» [3 nomeados em 3]:
Na lista que diz respeito aos pintores, são portanto incluídos apenas dois nomes com actividade em Portugal: no penúltimo lugar, o nome de um tal Jacome, «italiano, pintor del-rei D. João de Boa Memória» e – único português distinguido entre os grandes pintores europeus, apesar do seu último lugar na lista – «o pintor português (...) que pintou o altar de S. Vicente de Lisboa», o famoso mestre... incógnito!
Não fora a outra referência ao «pintor del-rei D. Afonso» e a paternidade do políptico de Sto. Incógnito-Sem-Atributos ficaria também ela incógnita, mesmo para os devotos do dogma da certeza holândica, já que o próprio Holanda se esquece de nos fornecer o nome do maior pintor português de que tem conhecimento...
Mas quão seguro pode ser esse conhecimento, se até a única referência ao nome, perdida no corpo da obra, ocorre quase como um afterthought para lembrar uma excepção marginal à pintura «péssima e sem arte» do «tempo mui bárbaro»? O que parece provável é que Holanda não tenha sabido muito mais do que se sabe hoje através de um ou outro documento que refere a existência de um pintor de D. Afonso V com o nome de Nuno Gonçalves. Por razões muito provavelmente similares, o já citado manuscrito do Rio, escrito meio século depois, atribui a autoria dos painéis do retábulo, não a Nuno Gonçalves, mas a um tal Mota, pintor de D. João II. O mais provável é que, tanto Holanda como o autor do manuscrito, tenham partido dos reinados a que atribuíam a pintura dos misteriosos painéis, para a procura de algum pintor mencionado algures como activo em cada um desses tempos diferentes, independentemente de alguma evidência que lhe atribuísse a autoria de forma categórica.
Se assim não fosse, se houvesse mesmo uma certeza categórica, como se explicaria a ausência do nome de Nuno Gonçalves na lista dos «águias da pintura»? O argumento dos modernos seguidores de Holanda é que não havia necessidade de o repetir, uma vez que a identificação já estava feita noutro local. Mas, estranhamente, o argumento só parece aplicar-se a Nuno Gonçalves. Pintores tão eminentes e prolíferos como Miguel Ângelo, Leonardo ou Rafael são referidos múltiplas vezes no corpo da obra e não seriam facilmente esquecidos pelo leitor, e apesar disso a sua identificação nas listas finais «para memória» é feita pelos próprios nomes. O conhecimento da pintura do norte da Europa, por parte do italianizante Holanda, parece de resto bastante reduzido, como decorre da própria lista: do 1º ao 17º, todos os pintores são italianos ou, nos casos específicos do 15º e 16º, espanhóis italianizantes, e todos eles têm nomes; só em 18º lugar surge Quentin Metsys, um flamengo; o 19º é um provável catalão cujo nome já nem sequer é conhecido, incluído pelas cores das suas pinturas; em 20º, outro italiano com nome, e desta feita activo em Portugal no tempo de D. João I; finalmente, no 21º e último lugar, o único português da lista dos notáveis, «o pintor (...) que pintou o altar de São Vicente», sem nome assinalado...
A forma como Holanda se refere a cada um dos listados sugere fortemente que só não cita o nome quando não sabe ou se esqueceu. O próprio estilo e intenção das listas apresentadas na conclusão do livro, indicam isso mesmo: se não está o nome a preservar, está «um foão» (i. e. um fulano, um nome incerto ou desconhecido), ou «o que iluminou», «o que fez», «o que pintou», a obra admirada. Note-se que Holanda refere o «pintor português» exactamente nos mesmos termos em que refere aqueles de cujos nomes visivelmente não dispõe, identificando-os apenas pelas obras que lhe suscitam admiração. Não diz, por exemplo, «aquele notável pintor português que noutro local mencionei» ou «aquele notável e sobejamente conhecido pintor português»; diz simplesmente «o pintor português (...) que pintou».
Das 55 referências de Francisco de Holanda
a grandes artistas europeus «para memória», só
8 não são identificadas pelo nome, e as razões parecem
claras: não sabe, não se lembra, ou tem dúvidas. Dos
4 activos em Portugal (dois pintores, um iluminador e um arquitecto), 3
são nomeados (e dois deles são Holandas...) e um único
nome é ignorado: justamente o do «pintor (...) que pintou o
altar de S. Vicente de Lisboa»!
A explicação alternativa ao génio português Nuno Gonçalves – sem antecedentes nem sucessores próximos em Portugal, nem qualquer referência aprofundada por parte de quem inclui o «pintor del-rei D. Afonso» no rol dos 21 maiores pintores da Europa, graças a uma enigmática pintura de óbvio alcance histórico de que nada mostra saber (nem sequer a identidade dos retratados!) – é muito simples de enunciar: Francisco de Holanda não referiu o nome entre os «águias da pintura» porque dava valor à obra mas quase nada sabia sobre o pintor, para além da sua presumível origem portuguesa, já que, de seu conhecimento, D. Afonso V não tinha tido pintores estrangeiros como D. João I tivera o seu «M. Jacome, italiano». E referiu-o noutro contexto porque, apesar de tudo, sendo a obra invulgar e supostamente portuguesa, uma referência marginal, atenuada até por algumas dúvidas sobre uma outra possível obra do tal presumível «pintor del-rei D. Afonso», não o incomodou excessivamente. Por outras palavras: onde sentiu uma maior necessidade de rigor, numa lista estabelecida à guisa de conclusão da obra, não se enganou no nome, porque não o mencionou sequer; e onde se enganou, foi onde não sentiu um imperativo tão forte de certeza e rigor, susceptível de fazer pensar duas vezes. |
Em reforço do que precede, note-se ainda que o mesmo Francisco de Holanda, conforme observado em Markl (1987), volta a nem sequer mencionar, quanto mais nomear, Nuno Gonçalves, noutra passagem dos seus escritos, em De Quanto Serve a Ciência do Desenho e Entendimento da Arte da Pintura na República Cristã Assim na Paz Como na Guerra, no início do capítulo VII, dirigindo-se ao infante D. Luís com quem dialoga em Barcelona:
«A minha tenção não é abater os entendimentos dos ínclitos e excelentíssimos reis e príncipes de Portugal, porque me prezo de muito bom português, mas antes de os engrandecer, como sempre fiz assim em Roma como em Portugal, porque se outra coisa dissesse mentiria. Porquanto os reis vossos antepassados todos estimaram muito a pintura e o desenho e se serviram dele. Como foi o primeiro rei D. Afonso Henriques e seus edifícios, e el-rei D. João de boa memória que muito estimou a mestre Jacome pintor italiano excelente por então, e D. João o Segundo a Martinos, e el-rei D. Manuel e el-rei D. João vosso avô, que muito estimava meu pai (sem ser pintor) António de Holanda, e de mim digo que muito mais do que eu merecia».
Novamente deparamos com o italiano Jacome, pintor de D. João I e um dos «águias», a que se acrescenta desta feita um tal Martinos, pintor de D. João II. Do prodigioso Nuno Gonçalves, no entanto, é que nem nome, nem a mais ligeira menção, directa ou indirecta, apesar da singular oportunidade de inclusão no seio dos pintores exemplares dos reis portugueses... |