AS INSCRIÇÕES NAS BOTAS FraPesInfArcCavRel

DUAS BOTAS || REI: VESTÍGIOS | TRAÇADO || PRÍNCIPE: PERSPECTIVAS | SOMBRAS | ESPELHO
Visão externa Rotação 180º Imagem de espelho
ESQUERDO
ESPELHO
A INSCRIÇÃO NA BOTA DO PRÍNCIPE
(Diferentes perspectivas)

Uma característica comum das leituras que não recorrem ao espelho, é a dedução quase divinatória de séries de palavras a partir de simples iniciais, um processo óbvio e indispensável quando se trata de interpretar um monograma, mas que não nos parece o mais apropriado para a compreensão do que aparenta ser uma sucessão relativamente longa de caracteres com uma continuidade fluida de tipo caligráfico.

Note-se, aliás, que a maneira de orientar a inscrição e a consequente tentativa de decifração que dela decorre, são determinadas, logo à partida, pela interpretação que se faz de um dos caracteres individualizados mais em evidência, individualização essa que resulta do seu enquadramento por dois pontos. A título de exemplo, descrevemos, a par da nossa própria leitura, duas outras, ambas recentes e correspondendo cada uma delas a uma das orientações representadas nas figuras de topo (sobrepondo o cursor do rato às imagens realça-se a inscrição):

João Eanes ?

Scilicet ?

1) Na primeira, Theresa S. de Castello Branco (1994) lê, sem qualquer rotação, o referido sinal como a abreviatura de scilicet (uma letra S com um ponto de cada lado) e a inscrição completa como

A S E J E G J C Ccl

significando «Amen [Scilicet] Ego Joan Eanes Gratia Jesu Cristi conclusus».

Nuno Gonçalves ? Nuno ?
2) Na segunda, Jorge Filipe de Almeida (2000, 2003), rodando a inscrição 180 graus (colocando-se assim no ponto de vista do proprietário da bota), lê o sinal verticalmente como uma letra N com um ponto por cima e outro por baixo, e a inscrição completa como

S N Gs A CCCC Rb

significando «Sinal Nuno Gonçalves Ano Quatrocentos Quarenta e cinco».

Isabel de Borgonha ?

Etiam ?

3) Na nossa própria versão, a inscrição é lida não só do ponto de vista do proprietário da bota, mas depois de este ter compreendido a inconveniência de uma mensagem sinistra e de a ter transformado em destra com a ajuda de um espelho. O sinal em maior evidência não carece de interpretação porque assume a forma exacta de uma letra Z, com o significado acrescido da abreviatura de etiam (uma letra Z com um ponto de cada lado). A inscrição completa é lida de forma fluida, não como uma sucessão de iniciais, mas como um nome seguido de uma abreviatura:

YZAbel DCCQ

significando «Yzabel, dictus», sendo que o próprio nome espelhado contém uma segunda adivinha, sob a forma «Y / etiam (ainda) / Abel», que explica a utilização de maiúsculas e minúsculas, e também a presença dos dois pontos.

Grafismo

A verosimilhança do nome «Yzabel» resulta para nós de vários factores que passamos a expor:

1)  Legibilidade de um nome integral

A imagem espelhada fornece um nome integral, legível com um mínimo de esforço e sem qualquer necessidade de ajustes (como sejam mudanças de eixo de leitura; ou de percepção da orientação, dimensão ou estilo das letras individuais), em contraste com as sucessões de iniciais que, apesar do seu carácter muito menos rígido, devido à latitude das interpretações possíveis, são todavia acompanhadas de fortes implausibilidades, tanto do ponto de vista paleográfico como do puramente estético (como sejam a necessidade de justificar uma suposta letra A através da palavra «Ámen», ou uma suposta letra S através das palavras «Selo» ou «Sigillum», supostas introduzir o conceito de «assinatura sigilográfica» através de uma assinatura que de selo nada tem.

Que de uma imagem de espelho possa nascer um nome por extenso, relevante ao contexto histórico, numa escrita de aspecto uniforme e harmonioso, sem os artifícios de interpretação lógica e estética que as séries de iniciais, apesar do seu carácter quase arbitrário, exigem, parece-nos um poderoso argumento em favor da leitura do espelho.

2)  Coerência do método

A chave que se torna necessário usar para atingir o nome «Yzabel» – a utilização de um espelho – é um eco da chave maior que permite compreender a mensagem global do políptico (percepção, seguida de extensão, do espelho central do políptico).

3)  Carácter inesperado do nome

A leitura do nome «Yzabel» foi, para nós, posterior à compreensão da charada que a simetria imperfeita do políptico inicializa, mas anterior ao completo enquadramento familiar da sua mensagem. O próprio senso comum aponta como mais fiável o aparecimento de um nome insuspeitado, escrito por extenso de forma limpa e convincente, do que a habitual materialização das iniciais que mais convêm ao pintor da predilecção de cada um, através de contornos muitas vezes forçados ou inestéticos, mergulhados no seio de outras iniciais com leituras praticamente arbitrárias.

Duvidamos, por exemplo, que os autores acima citados deduzissem as letras «JE» ou «NGs» se não estivessem previamente de posse dos nomes «João Eanes» e «Nuno Gonçalves». Se um elemento de convicção puramente subjectiva nos é permitido, ele consiste no facto de o nosso trajecto ter sido justamente o oposto: a leitura do nome primeiro, através do método ditado pela própria organização do políptico; e só depois a identificação da personalidade por trás do nome, imposta, na ausência de documentação coeva indiscutível, pelos próprios painéis, e não pelos seus intérpretes posteriores (v. a sequência dos nossos artigos referidos na introdução).

4)  Precisão do sinal enquadrado pelos pontos

Confirmando a presença de charadas sucessivas, o método que permite ler o nome «Yzabel», explica igualmente o sinal enquadrado por dois pontos (que, para além do mais, constitui uma pista subtil indicativa do que há a fazer para aceder à leitura da inscrição), uma vez que permite uma percepção perfeita da abreviatura «. Z .» de etiam (i. e. ainda, agora ainda) que, ao desdobrar interiormente o próprio nome «YZAbel» em «Y (ainda) Abel», repete uma mensagem presente ao longo de todo o políptico, a saber a de uma profunda ligação ao infante D. Pedro (Abel) e de uma reprovação do papel do infante D. Henrique (o outro irmão bíblico, como está bem de ver...) na morte de dois dos seus irmãos (Pedro em Alfarrobeira, frente ao exército dos seus inimigos, aos quais o próprio Henrique se juntou; e Fernando como resultado do desastre de Tânger e posterior quebra de palavra e oposição, por parte de Henrique, à sua libertação em troca da cedência de Ceuta).

5)  Justificação das inscrições em duplicado

A inscrição «Yzabel», habilmente dissimulada muito perto, e de forma paralela, à primeira inscrição «AFV + Y» da bota direita de D. Afonso V, longe de constituir uma repetição fastidiosa da identificação de algum pintor obcecado com os seus próprios sinais a ponto de os repetir em todas as botas e borzeguins ao seu alcance, confirma em pleno a existência de dois polípticos paralelos, destinados, um deles a D. Afonso V, o outro ao futuro D. João II, respectivamente assinalados pelo monograma da união com Isabel, filha do infante D. Pedro, e pelo voto cumprido de Isabel, última sobrevivente da Ínclita Geração de seis irmãos. Não só a existência de duas inscrições, mas as próprias razões para a ocultação de uma delas, ficam assim inteligíveis.

6)  Elegância da dissimulação

Last but not least, podemos observar que as interpretações da inscrição que procuram uma leitura directa, sem quaisquer artifícios, conduzem necessariamente a resultados fantasiosos em termos de reconhecimento das letras; enquanto que as que conseguem resultados menos afastados de formas familiares, sem recurso ao espelho, conseguem-nos à custa de mudanças sucessivas de ponto de vista, inestéticas e improváveis. As interpretações dos autores acima citados parecem-nos paradigmáticas destas duas situações.

A primeira tem a virtude da simplicidade, mas conduz a letras cujo formato nem com a maior das boas vontades conseguimos aceitar. A segunda, por sua vez, conduz a uma razoável aproximação de alguns formatos familiares, mas exige sucessivamente que o observador faça o pino ou inverta o painel (o que seria perfeitamente aceitável se conduzisse a alguma mensagem inteligível endereçada específicamente ao proprietário da bota); leia, a seguir, os cinco primeiros sinais (S G Ns A) mantendo uma determinada orientação da inscrição; proceda depois a uma rotação de 90 graus para ler os quatro sinais seguintes (CCCC), sendo que o primeiro desses quatro deverá sofrer uma inversão adicional, ficando com a curvatura voltada no sentido oposto à dos outros três para compor «um efeito decorativo semelhante àquele que é desenhado pela metade inferior do G e pelo s»; e finalmente, restitua, com uma nova rotação, a orientação inicial de leitura, a fim de distinguir (desta feita, na mesma linha) dois sinais paleográficos com o significado de «quarenta» e de «cinco» (uma abreviatura de «xl» e uma estilização cursiva de «v», representadas como «R» e «b») que, mais uma vez, nem com a maior das boas vontades e abertura à ideia invulgar de se misturarem numerações romana e cursiva, conseguimos descortinar.

Segundo o autor desta última interpretação, os dois últimos sinais são de leitura particularmente difícil porque o pintor dispôs apenas de um espaço exíguo para os inscrever, mas ocorre então perguntar se alguém, para além do pintor, determinou o espaço disponível, ou, alternativamente, por que razão desejaria o pintor inserir o ano da obra de forma tão confusa e ineficaz, para não dizer de todo indetectável. Observe-se o carácter forçado de semelhantes transformações e ocultações (involuntárias?), bem como a angulosidade superior de um «n» minúsculo de tipo caligráfico algo invulgar (ou então maiúsculo, mas desenhado ao contrário), sobretudo quando em companhia do «G» maiúsculo seguinte, o inusitado de uma abreviatura «Gs» (com «s» em vez de «z») para o nome do pintor desejado, e a própria letra «A» desproporcionada em dimensão e formato, para se compreender o que entendemos por «inestético».

Há que sublinhar que o gosto pelas adivinhas quase subliminais, pelas perspectivas inusitadas, pelas imagens de espelho, pelas deformações anamórficas, por todas as formas lúdicas de veicular mensagens, não eliminava a procura de sentido, precisão e elegância. Ora, em contraste com as repetidas mudanças de perspectiva, tudo o que o observador tem de fazer para aceder à leitura espelhada da inscrição é... colocar um espelho por baixo dela. Assim se acede à visão que a personagem do painel adquire ao transformar o seu inadequado pé esquerdo em direito, através de um espelho imaginário colocado ao seu lado, dentro da própria pintura. Parece-nos difícil conceber uma dissimulação mais hábil, elegante, carregada de sentido e imediatamente acessível ao observador que previamente compreendeu a estrutura do políptico.

A complexidade em que o acesso à assinatura repousa, não é a de iniciais paleográficas de muito difícil entendimento, nem a de incómodos movimentos e correcções durante a leitura, rumo à hipótese de letras mais familiares (arrastando sinais «C» de centena com orientação diversa dentro da mesma data e um final atrofiado a ponto de a data que se pretende transmitir se tornar ilegível), mas apenas a inerente ao objecto mágico, fonte de fascínio para a pintura eyckiana e suas sucedâneas do final da Idade Média, sob cuja égide a assinatura, como todo o políptico à sua volta, é colocada: o espelho criador de simetria.