A INSCRIÇÃO NA BOTA DO PRÍNCIPE(As zonas de sombra)
As sombras causadas pelas depressões da bota que acompanham o feitio dos
dedos (a consistência é, aliás, mais de borzeguim maleável que de bota propriamente dita)
são aproveitadas para mergulhar na ambiguidade os dois pontos de convergência de traços mais
essenciais à compreensão das letras figuradas. As depressões são particularmente inteligíveis
sobre as três linhas paralelas que enquadram a inscrição do lado exterior do pé, e prolongam-se
sobre o friso de sinais segundo os eixos indicados nas figuras através de setas (sobrepondo o
cursor do rato às imagens realça-se a inscrição).
Na inscrição espelhada YZAbel DCCQ, as duas
junções que, em virtude do jogo de luz e sombra, são mantidas numa relativa ambiguidade,
localizam-se no ângulo do «A» maiúsculo, para onde os dois ramos que compõem a letra convergem,
e no ponto de encontro onde o «l» se integra no pé alongado da letra «e» que o precede, num
remate harmonioso que confere ao grupo de quatro letras «Abel» uma caligrafia fluida, contribuindo
para o autonomizar das restantes letras, sem choques de dimensionamento ou estilo.
Noutro local abordamos em mais pormenor o significado da
adivinha centrada no «. Z .» que cinde interiormente o nome «Yzabel», e referimos as razões por
que a leitura do espelho nos parece muito mais satisfatória do que outras leituras desprovidas de
qualquer explicação para o facto insólito de uma mensagem – presumivelmente de boa-vontade – ser
colocada no pé esquerdo de um adolescente destinatário. Mais uma vez, nos painéis de todos
os silêncios, a escolha é simples: ou mais um dado inaudito confortavelmente menosprezado como
distracção do pintor (incipiente?), ou a sua percepção como mais um estratagema digno de uma charada
repleta de simbolismo e astúcia.
Não deixa, todavia, de ser interessante notar que, das leituras que não recorrem ao
espelho, a que, em nossa opinião, melhor consegue agrupar os diferentes traços em caracteres minimamente
estruturados, é justamente aquela que reconhece igualmente as junções tornadas ambíguas pelas sombras.
Referimo-nos à anteriormente citada leitura vertical
S N Gs A CCCC Rb de Jorge Filipe de Almeida
(v. orientação da primeira figura do topo), que lê um «G» maiúsculo onde lemos o «A», e um «a» (com
formato de minúscula, mas de grande dimensão e inferiormente desligado) onde lemos o conjunto «el». Ambas
as aproximações – leitura vertical ou através do espelho – levam em conta o predomínio do desenho sobre
as descontinuidades ambíguas introduzidas pelas zonas de sombra.
Naturalmente, parece-nos muito mais sólida a imagem espelhada que fornece um nome integral
sem uma única mudança de eixo de leitura, do que uma simples sucessão de iniciais apresentando as
dificuldades que antes referimos, entre as quais a repetida necessidade
de reorientação das letras. Mas, para além da forte verosimilhança do nome «Yzabel», interessa-nos
ainda discutir os últimos quatro sinais que interpretamos como «DCCQ».
A verosimilhança da abreviatura de dictus, sob a forma «DCCQ», resulta para nós de
vários factores que passamos a referir, e apresenta uma única dificuldade que trataremos em último lugar:
1) Precisão dos contornos
A primeira observação a fazer é a de que a segunda e terceira letras do grupo que interpretamos
como «DCCQ» não são objecto de grandes disputas, pelo menos em relação às leituras que procuram
uma data nos últimos sinais da inscrição e igualmente as interpretam como «CC», mesmo a partir
de diferentes pontos de vista de leitura, graças à simplicidade das suas formas (dois simples
arcos, um deles um pouco dissimulado atrás do sinal seguinte, mas com curvaturas aproximadamente
paralelas). O mesmo sucede até com interpretações que optam por iniciais ou abreviaturas ao
invés de datas, como é o caso da anteriormente citada leitura
A S E J E G J C Ccl de Theresa S.
de Castello Branco.
Quanto ao primeiro sinal do grupo que interpretamos como «DCCQ», ele torna-se muito problemático para
todas as leituras de datas porque a curvatura do seu arco é oposta à dos «CC». Apenas a imagem de
espelho da inscrição faz sobressair um «D» esquemático mas perfeitamente convincente, graças à inclusão
da pelica (o pequeno sinal anterior ao arco, único flutuante e desligado, para além dos dois que
enquadram o «Z») que faz toda a diferença na sugestão da letra. Uma vez obtida a sequência «DCC»,
a hipótese de uma data torna-se ainda mais improvável, e a de uma abreviatura ganha verosimilhança.
Examinando os traços finais, observam-se dois arcos com curvaturas opostas, um deles formando uma argola
inferior que se prolonga numa cauda. O próprio dimensionamento das restantes letras recomenda que se
leia o conjunto (com uma forma próxima de «C2», graças, mais uma vez, ao jogo de sombras que lança
ambiguidade sobre as junções dos dois arcos) como uma única letra, e daqui resulta um «Q» bastante
reconhecível, sem qualquer mudança de eixo de leitura ou outra transformação esteticamente pouco recomendável.
2) Adequação ao contexto do nome
A abreviatura «dccq» (usualmente representada em minúsculas) significa dictus, podendo ter
a acepção de «dito, prometido». A aposição ao nome «Yzabel» de uma palavra indicativa de um voto assertivo,
no contexto conhecido das reacções da duquesa de Borgonha à morte do seu irmão Pedro, bem como do que se
pode observar no conjunto dos painéis à luz do mesmo conhecimento, é de tal forma apropriada que dificilmente
se poderia sintetizar melhor a origem e significado da obra do que através deste simples par de palavras:
«Yzabel, dictus».
3) Carácter inesperado da abreviatura
Embora no primeiro ponto tenhamos procurado uma dedução progressiva da abreviatura que se segue à
palavra «Yzabel», a nossa própria percepção da mesma, subsequente à leitura do nome, efectuou-se através
do simples contorno das letras desprovido de qualquer significado imediato. Se, mais uma vez, um elemento
de convicção puramente subjectiva nos é permitido, ele consiste no facto de, tal como a leitura do nome
precedeu a localização da personalidade por trás dele, a leitura da abreviatura ter precedido o
conhecimento do seu significado.
4) Porquê «DCCQ» em vez de «dccq» ?
O único problema que a interpretação do grupo final de letras «DCCQ» como forma de representar a
abreviatura «dccq» de dictus coloca, deve-se ao facto de o último dos sinais desta abreviatura,
normalmente escrita em minúsculas, não ser exactamente um «q», mas um sinal de haste curva com a
forma do numeral árabe «9». Esse sinal, uma das abreviações paleográficas mais comuns, pode assumir
os valores «con», «cum» ou «us» e naturalmente não tem nenhuma representação maiúscula usual. O que
poderia ser uma dificuldade se não existisse nenhum motivo para tornar a leitura da inscrição discutível
(não devemos confundir o simples gosto pelas adivinhas e charadas gráficas hábeis com a intenção de
disfarçar uma mensagem que se deseja, não só engenhosamente dissimulada, mas discutível em permanência,
uma vez descoberta) torna-se, no entanto, perfeitamente aceitável quando se compreeende que o autor da
charada procurou, na imagem espelhada da bota, disfarçar a abreviatura «dccq», passando-a para maiúsculas
e escolhendo naturalmente a letra «Q» como a mais adequada para representar o seu último sinal.
Na assinatura dirigida ao futuro D. João II transparece, de resto, a habitual irresolução
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omnipresente nos mais variados aspectos dos painéis, visando impedir que a análise capaz de apreciar as
pistas relevantes de maior peso probabilístico possa cancelar por completo o ponto de vista ingénuo cuja
sobrevivência depende da existência da excepção mínima, calculada e sistemática.
No caso presente, podemos resumir a situação do seguinte modo:
– A aceitação do espelho permite, sem qualquer manobra suplementar, descobrir
(num pé direito) um nome de seis letras, altamente significativo e escrito por extenso; compreender uma
adivinha subtil que, por sua vez, explica cabalmente dois pontos em aparente excesso que ajudam a dissimular
esse nome; e, finalmente, esgotar a inscrição com a leitura de uma abreviatura carregada de sentido.
– A recusa do espelho, em contrapartida, permite (num pé esquerdo) a
combinação quase infinita de palavras apetecíveis através das suas iniciais, com a ajuda de todas as manobras
de orientação, reorientação, rotação e deformação que a mente humana seja capaz de congeminar.
E como se impede que a leitura destra da inscrição triunfe definitivamente sobre as infinitas possibilidades de
leituras sinistras? É simples: a leitura destra jamais poderá ser universalmente aceite porque o último
dos dez sinais reflectidos no espelho deveria ser um «9» e não um «q»...
O leitor julgará, mais uma vez, se é através da presença ou da ausência do espelho que a mensagem se deforma
e a sua subtileza se perde. |