DECIFRAÇÃO PONTILHOSA? |
|
||||||||
PONTILHAS? Num só pé? Em desequilíbrio? Em levitação? O intrépido leitor decide. O uso de pontilhas (em francês «poulaines»), um tipo de calçado de pontas extremamente alongadas, e por vezes levantadas, que esteve em voga em toda a Europa, sobretudo no terceiro quartel do século XV, é frequentemente invocado pelas interpretações da estranha protuberância pontiaguda [A] que levanta e estica de forma pronunciada o rectângulo de tecido de brocado cosido sobre a alva (a túnica branca envergada por baixo da dalmática) da figura central no painel do Arcebispo. No entanto, mesmo ao lado, está também, discreta mas claramente visível, uma ponta [B] do outro apoio no solo da figura, mostrando não se poder tratar desse tipo de calçado. Entre as tentativas de explicação da estranha prega referidas por diversos autores figuram, a par da «ponta de sapato de pontilha» (para um só pé, com sapato diferente ou talvez perna de pau no lugar do outro?), as hipóteses a que poderíamos chamar «da levitação» (sem asas angélicas e em contacto com o chão como se pode verificar em [B] pela curta sombra triangular contígua ao apoio e ao rebordo da alva na sua proximidade?) e até, com intenção menos sisuda, «da cimitarra à cinta» (embainhada por baixo da alva, talvez para ocultar origens infiéis?). Tudo isto nos parece divertido mas absurdo, sobretudo pela ausência generalizada de ponderação, não tanto do que está dificilmente visível, mas sobretudo das razões para essa insuficiência sistemática, o que nos coloca mais à vontade para o nosso próprio exercício de descodificação do todo, com os riscos que comporta. Pela nossa parte, constatamos mais convergências bizarras na coexistência próxima (casual?), e numa mesma figura, do pé (presumivelmente calçado) e da prega que parece levantada por um objecto pontiagudo. Um pé visível e uma ponta aguda invisível, portanto, que, a menos de anatomia anormal da figura a que pertencem (um casco e uma cauda?...), só poderiam ser vistos como contraditórios (ou incompatíveis com figuras santas), se justificação para a curiosa prega não existisse.
Observamos ainda que é neste mesmo painel (e em mais nenhum),
de novo no limiar marginal da pintura e, como já seria de esperar,
bem próximo da zona do problema
em consideração, que se entrevêem, e em duplicado, as únicas pontilhas do
políptico (1).
Nas figuras à esquerda e à direita, os traços vermelhos indicam
os limites inferior e lateral da pintura – recordemos que o painel
não sofreu
qualquer corte inferior (ou lateral significativo) – de tal forma contíguos
aos detalhes das pontilhas que só in loco ou em raras reproduções
fotográficas abrangentes da totalidade do painel sem a mínima perda marginal
o leitor as conseguirá observar.
Não é demais continuarmos a sublinhar a presença próxima dos limites dos painéis
de numerosos pormenores significativos que só por si, pela sua localização extrema e
proximidade a outros pormenores intrigantes a que parecem estar ligados – por vezes
de forma quase subliminar
(2)
– deveriam contribuir para a compreensão de estarmos
perante uma obra que desde a sua origem propõe uma charada intencional extremamente
elaborada. Recordemos, por exemplo, o prolongamento vertical da caixa de madeira no
limite superior do painel da Relíquia, ou a necessidade de captarmos as pequenas porções
visíveis das mangas vermelhas da criança (o futuro D. João II) e do cavaleiro de verde
(o falecido infante D. Pedro) nos limites dos painéis que cortam as silhuetas, para
compreendermos que envergam rigorosamente as mesmas cores nas suas indumentárias,
traduzindo discretamente o voto de identificação e continuidade do avô no neto que os
autores do políptico quiseram exprimir.
Optamos pois pelo reconhecimento do habitual jogo da sugestão e irresolução
📜
planeadas, desta feita disfarçado pelas pontilhas desculpatórias que propiciam o recuo
evasivo de qualquer outra interpretação, como se as duas únicas pontilhas visíveis de
dois pares diferentes que nada indica não serem completos e coerentes recomendassem
– valham-nos S. Crispim e S. Crispiniano! – aceitar uma terceira pontilha visivelmente
desirmanada do seu par e perturbadora da própria estabilidade da figura pelo seu
posicionamento (e não só)...
1) A mais jovem das figuras deste painel, cujos pés estão visíveis logo abaixo do cotovelo da figura ajoelhada sobre um só joelho, calça botas ou botins de ponta estreita, mas não do mesmo tipo de pontilhas longas e levantadas que usam as duas figuras dianteiras e poderiam justificar a prega da alva (se o alegado pé da figura central que a enverga não estivesse acompanhado do outro). 2) Compare-se a disposição dos três barretes invulgares e dos três cintos enrolados em bainhas com a das três propostas de pontilhas: em todos os casos enquadramentos similares de aspectos problemáticos por justificações próximas que usam figuras contíguas e não se repetem noutros locais do políptico:
3) Como pensamos que já alguém disse, os coleccionadores de filatelia e fotografia em albuns antigos captarão talvez com mais facilidade a função da prega angular... 4) Ou tradutor, já que ver e fazer ver são empresas distintas. Mais uma vez, não será demais recordar a permanência do método de confirmação do improvável ou inaudito – neste caso, a deslocação virtual do rei de um painel para outro – através de pistas paralelas, por sua vez insólitas e carentes de explicação. Invoquemos para isso a semelhança do papel da estranha prega posicional da alva com o do – à primeira vista insólito – barrete de confirmação da ascensão do cavaleiro de negro ao painel dos santos homens, numa fase anterior da decifração do políptico, também ela carregada de humor e desafio dirigido ao tradutor, mais que ao decifrador, do políptico... 5) O leitor e viajante no tempo desejoso de reduzir a dualidade da figura central respondendo categoricamente à interrogação, poderá ponderar a perenidade e ubiquidade furtiva dos símbolos colectivos através da modesta sugestão que lhe propomos: |