CAPÍTULO I

O PROBLEMA DO POSICIONAMENTO

FraPesInfArcCavRel

Os seis painéis

A primeira e imediata constatação que fazemos perante os seis painéis variavelmente designados como «de S. Vicente», «da Veneração de S. Vicente» ou «de Nuno Gonçalves», e individualmente por (da esquerda para a direita) «Frades», «Pescadores», «Infante», «Arcebispo», «Cavaleiros» e «Relíquia», é a de que estamos perante uma obra única, profundamente original e intrigante. A grande aglomeração de figuras preenchendo todo o espaço disponível, sem um único intervalo que permita discernir claramente algum fundo através da parede humana que se estende de um extremo a outro, a distribuição das figuras em planos sucessivos até ao topo dos painéis, os objectos obviamente carregados de simbolismo não imediatamente compreensível, são os primeiros elementos visíveis de um mistério que se arrasta desde fins do séc. XIX.

As circunstâncias da descoberta moderna dos painéis parecem indicar que o mistério dura há mais tempo: a união física em que foram encontrados os quatro painéis menores, juntando duas a duas cenas distintas e bem individualizadas (Frades / Relíquia e Pescadores / Cavaleiros), aponta uma evidente e antiga incompreensão do significado original do conjunto.

Para além disso, a identificação da dupla figura central como S. Vicente por razões completamente alheias à lógica interna dos painéis, coloca um problema grave: se a identificação fosse correcta, estaríamos perante um verdadeiro absurdo iconográfico: dois painéis, obviamente importantes e centrais, em que não se vislumbra qualquer forma de identificar o santo representado, e em que a figura do mesmo é acompanhada por um conjunto de objectos – um livro, uma vara e uma corda – que nada têm a ver com os seus atributos usuais.

A oportunidade de fazer figurar os emblemas tradicionais do santo é óbvia, dada a disponibilidade da sua pose central como ponto de referência das cenas envolventes, mas essa figuração não se verifica: nem a usual palma do martírio, nem a pequena nau que simboliza o transporte dos seus ossos por mar, nem corvos, nem mó, nem gadanho, leito de pregos ou qualquer conjunto de atributos que pudesse identificar esse ou outro santo. O livro, possível como atributo de uma multiplicidade de santos, resulta insuficiente e altamente improvável no contexto da obra e da forma como é exibido (1); e a dalmática que enverga poderia apontar na direcção de qualquer um dos vários santos diáconos ou de nenhum, não se vislumbrando a razão de ser de um santo «incógnito», raro na pintura e estatuária medievais.

Por outro lado, o único testemunho histórico que parece referir de forma inequívoca pelo menos dois dos painéis (os maiores), coloca-os no retábulo das relíquias de S. Vicente da Sé de Lisboa, mas limita-se a descrever cenas que parece não entender e para as quais encontra justificações pouco convincentes. Trata-se do frequentemente citado manuscrito do Rio de Janeiro, descoberto por Artur da Motta Alves em 1933 e publicado em 1936, uma carta integrada num códice existente na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro que fazia parte dos manuscritos da Biblioteca da Ajuda levados para o Brasil em 1807, onde um autor desconhecido faz uma resenha dos retratos de figuras reais existentes em igrejas e mosteiros de Lisboa.

A análise paleográfica da escrita indica que o documento data de fins do séc. XVI, e nele se refere expressamente que os dois painéis, descritos de memória, já não se encontram no retábulo, sendo o seu paradeiro ignorado («dirão os cónegos onde estão»). A forma como o autor os recorda, atribuindo-os a um tal Mota, pintor de D. João II, não identificando uma única das figuras que rodeiam o «santo» e justificando o estranho aspecto efeminado deste último através da identificação do seu rosto com o de um adolescente – o infante D. Afonso, filho de D. João II, nascido em 1475 e falecido aos 16 anos – indica uma estranha ignorância do significado das duas cenas e da identidade dos seus protagonistas – que deveria ser notória, dada a óbvia importância da obra – por parte de quem se mostra curioso acerca de outros retratos de reis existentes em Lisboa. Note-se que o exame radiográfico indica que a hipotética repintura tardia de um rosto adolescente numa figura adulta, necessária à sua identificação com o do malogrado príncipe, não teve lugar (2).

Luz visível Radiografia Radiografia Luz visível

Essa ignorância é tanto mais estranhável quanto os painéis representam algo de notoriamente diferente dos habituais e simples contextos das venerações de santos. Se as tábuas tivessem sido concebidas à partida como parte do retábulo de S. Vicente, acompanhadas por mais uma dezena de painéis como modernamente nos querem fazer crer, como se explicaria que o significado de uma obra notável pela sua execução e pela presença de tantas figuras eminentes tivesse tão depressa caído no esquecimento? Como explicar que mesmo um observador interessado como o autor do manuscrito – que parece conhecer obras menos importantes – ignore tudo (até o nome do pintor) sobre o que teria certamente sido a mais notável e elaborada veneração real do patrono de Lisboa?

Todas as outras referências aos painéis de «milagres» e «suplícios» do retábulo da Sé, e a curta mas famosa passagem de Francisco de Holanda que, em 1548, em Da Pintura Antiga, atribui o retábulo (sem o descrever) a Nuno Gonçalves, pintor da corte de D. Afonso V, são omissas de qualquer elemento que permita remotamente identificar um único dos seis painéis que, dado não exibirem vestígios de milagres ou suplícios (3), são nos dias de hoje referidos como «da Veneração de S. Vicente».

Ora se o conjunto dos seis painéis tivesse sido concebido como parte do retábulo da Sé onde, como nos indica o autor do manuscrito do Rio de Janeiro, se encontraram pelo menos dois deles em fins do séc. XVI – como uma enorme predela, por exemplo – nem por isso a sua unidade seria menos flagrante, e poderia talvez ficar um pouco mais aceitável a ausência dos atributos que tradicionalmente permitiam aos fiéis reconhecer o santo, dada a sua integração num conjunto mais vasto em que talvez figurassem de forma estranhamente periférica, mas como explicar então os quatro painéis menores?

As pinturas do retábulo teriam sido compostas por cenas da vida de S. Vicente (milagres, suplícios) a que somaríamos os dois painéis representando «S. Vicente (sem atributos) rodeado pelos notáveis» – os dois maiores dos seis – mas por que razão teríamos, por exemplo, no painel dos Cavaleiros, três figuras venerando num sentido e a quarta voltando as costas ao objecto da veneração? E como atribuir sentido ao painel dos Pescadores? Se não é um milagre, se não é um suplício, se não estão lá notáveis e nem sequer S. Vicente, o que representam aquelas figuras no contexto «retábulo» e porque reza uma delas com tamanha devoção, enquanto outras parecem dispensadas de qualquer atitude de veneração visível? As tentativas de resposta por parte dos que repudiam as leituras «fantasistas», i. e. que têm em conta os numerosos elementos simbólicos, requerem no entanto uma boa dose de imaginação mal dirigida: tratar-se-ia, ao que parece, de figuras de pescadores devotos de S. Vicente apanhados nas suas próprias redes. Por que razão estariam pescadores vestidos de verde no lugar dos peixes, e teria um outro vestido de castanho escapado à rede, não nos é explicado.

Lança-se outras vezes mão do camaroeiro utilizado como emblema heráldico pela rainha D. Leonor, mulher de D. João II, mas jamais se explica por que razão representaria um pintor o símbolo de uma rainha considerada muito virtuosa enchendo-o de homens desconhecidos. Ou então, mais confortavelmente ainda, remete-se a rede realmente existente para o limbo dos acrescentos espúrios sob o pretexto de que o não-registo radiográfico de traços finos e camadas ténues se deve a misteriosas razões cronológicas que terão escapado ao exame do restaurador, provavelmente mais ocupado a examinar as alternâncias de tintas e vernizes...

Que semelhantes leituras «literais» sejam seriamente consideradas, enquanto se condenam as «fantasias» que conduzem a dúvidas sobre a identificação da figura central e a autoria dos painéis, é uma boa indicação do beco sem saída a que as teses mais ortodoxas chegaram, limitadas todas as tentativas de interpretação pela sagrada veneração vicentina. A premissa inicial deveria, no entanto, ser responsabilizada pela qualidade das conclusões a que conduz.

Aspa Coluna De forma que uma aproximação sensata terá de passar pelas seguintes constatações:

  1. A autonomia dos seis painéis, com ou sem complementos acrescentados à sua volta, é flagrante, particularmente quando confrontados com o que resta dos possíveis painéis dos «suplícios» (a «Coluna» e a meia «Aspa»), que poderão ter sido acrescentados mais tarde e por outra mão ao núcleo primitivo.

  2. Das várias referências ao retábulo da Sé de Lisboa conhecidas, a primeira que refere o nome de Nuno Gonçalves (F. de Holanda) não descreve sequer um único painel do notório conjunto de seis. E a única que refere dois painéis desse conjunto (manuscrito do Rio), refere outro pintor, nada nos diz acerca do seu significado, e deixa transparecer alguma estranheza, formulando uma hipótese que se verifica ser errónea para explicar a incongruência do rosto efeminado da figura central, uma vez que não existem sinais de ter sido repintado e a idade do malogrado filho de D. João II não é compatível com a execução original da pintura.
Se os painéis são autónomos e estiveram colocados no altar de S. Vicente, sem que nenhum dos que eventualmente os referem explique, com algum aparente conhecimento de causa, o significado dessa extraordinária representação iconográfica de toda a sociedade portuguesa rodeando a família real, só parece provável uma explicação para esse lapso da memória colectiva, no decurso de apenas duas ou três gerações de frequentadores da Sé de Lisboa e da sua notável representação de tanta gente ilustre: os painéis ditos de S. Vicente são misteriosos desde a sua origem, tendo sido colocados no retábulo do referido santo por razões análogas às que ainda hoje presidem à sua pretensa identificação.

Por outras palavras, se a figura central tinha de ser um santo, apesar da flagrante ausência de atributos que apontassem algum santo individual, ela seria tortuosamente conotada, ontem como hoje, com S. Vicente, que teria sido, segundo a tradição histórica, um diácono da Igreja na época das perseguições de Diocleciano. Essa conotação far-se-ia através da dalmática que enverga, considerada como paramento clerical, apesar do seu aspecto solene mas acentuadamente laico: nem uma cruz, nem uma efígie religiosa, nem um único friso de representações piedosas no seio das suas ornamentações florais ou ao longo das suas orlas vermelhas, vazias de qualquer figuração simbólica. Semelhante ausência de símbolos religiosos nos paramentos não é única na iconografia de outros santos diáconos e nada significa por si só; e por outro lado, a presença de manípulo no pulso esquerdo, apesar de desprovido de cruzes cerimoniais, parece conferir um carácter litúrgico e sagrado à cena. Mas se lhe juntarmos a ausência de atributos reconhecíveis, substituídos em locais de eleição por objectos como uma corda, um livro ou uma vara dourada, e conjuntamente com o rosto inexplicável, torna-se claro que a única fundamentação da tese vicentina é completamente exterior ao políptico dos seis painéis em si.

O que pretendemos sugerir é que nem as interpretações «literalistas» que procuram identificar a figura central desinserindo-a do mistério que a rodeia, através de um documento antigo que mais não parece ser do que uma simples tentativa de atribuir sentido àquilo que não é compreendido, nem as interpretações fantásticas que consideram alguns dos numerosos elementos anómalos presentes nos painéis, mas integrando-os em contextos místicos desinseridos da realidade possível e tornando-os desse modo ainda mais ilógicos, são caminhos aceitáveis para a compreensão do políptico.

A tese que procuraremos enunciar passa pela compreensão de que os painéis não são nem um simples retrato de família e de veneração de um santo, nem um poço de numerologias e cabalismos. Parecem ser uma charada intencional, velha de cinco séculos, destinada a ser decifrada por quem estiver de posse das chaves necessárias. Essas chaves encontram-se na história do séc. XV português, na codificação simbólica característica da pintura flamenga coeva, e no simples exame racional dos múltiplos elementos aparentemente absurdos que cobrem os seis painéis de uma ponta à outra, unificando-os sem margem para dúvidas, em oposição aos restantes painéis atribuídos a Nuno Gonçalves (a «Coluna», a «Aspa», e os quatro Santos), que parecem distinguir-se apenas pela mais completa simplicidade e ausência de elaboração simbólica.

Mais precisamente, são o conhecimento das tensões familiares na casa de Avis depois da tragédia de Alfarrobeira, os dados biográficos de D. Afonso V e seus tios – incluindo a duquesa de Borgonha – e a compreensão de que o políptico é um todo com anomalias uniformemente semeadas pelos seis painéis (cuja disposição inicial é propositadamente fraca dos pontos de vista lógico e estético, a fim de forçar as interrogações), que poderão constituir o caminho para a decifração da mais misteriosa charada iconográfica de sempre.


CONFIGURAÇÃO INICIAL DO POLÍPTICO

O primeiro problema que se põe é, naturalmente, o da colocação correcta dos painéis, e os mais importantes elementos para a sua determinação encontram-se não só na inclinação progressiva das linhas formadas pelas lajes do pavimento, como ainda nas medidas diferentes dos painéis individuais.

Alinhamento aproximado das lajes

Embora as regras da perspectiva não fossem usadas à data da realização dos painéis com o conhecimento técnico e rigor de épocas posteriores – era vulgar, por exemplo, a ausência de ponto de fuga, ou a coexistência de vários na mesma pintura – parece evidente que o ângulo que as linhas do chão formam com a vertical varia de forma contínua e reveladora de uma configuração precisa. Se dispusermos os painéis como as linhas indicam, obteremos, medida no limite inferior de cada um deles, a seguinte variação progressiva desse ângulo:

CENTRAIS  (Infante e Arcebispo): 0 a 30 graus
INTERMÉDIOS  (Pescadores e Cavaleiros): 30 a 45 graus
EXTREMOS  (Frades e Relíquia): + de 50 graus

Por outro lado, as médias das larguras dos painéis, medidas no topo e na base de cada um deles, são as seguintes:

64,5
63,9
59,8
60,1
128,0
127,9
128,0
128,6
60,4
60,4
63,1
63,1

FRADES: 64,2 cm ( ± 0,3 cm)
PESCADORES: 60,0 cm ( ± 0,1 cm)
INFANTE: 128,0 cm ( ± 0,0 cm)
ARCEBISPO: 128,3 cm ( ± 0,3 cm)
CAVALEIROS: 60,4 cm ( ± 0,0 cm)
RELÍQUIA: 63,1 cm ( ± 0,0 cm)

Um exame, mesmo superficial, deste conjunto de dados aponta a disposição tradicional dos painéis como correcta. Não só as linhas do pavimento a sugerem, como ela parece ficar reforçada pela simetria das larguras, idênticas duas a duas.

Para além disso, as linhas do chão indicam que o políptico de seis painéis se encontra completo e sem lugar para eventuais adições de painéis desaparecidos, já que a inclinação aumenta gradualmente e sem soluções de continuidade, do centro para a periferia, desde a vertical até à proximidade do limite possível em termos de perspectiva.

Através de uma reflexão mais subtil poderemos agora encontrar a primeira de uma série de pistas para a compreensão dos processos usados pelo autor da charada. A interrogação que nos ocorre quando procuramos descobrir a colocação dos painéis, não é relativa às linhas do pavimento, portadoras de uma informação essencial e completa, mas às diferentes larguras que agrupam os painéis em três pares. Com efeito, os dois do centro são sensivelmente iguais, enquanto que os quatro menores apresentam diferenças suficientemente pequenas para não se tornarem notórias no conjunto do políptico, mas não tão reduzidas que passem despercebidas ou possam ser consideradas acidentais.

Porque terão os painéis dos Pescadores e Cavaleiros, praticamente iguais entre si, uma largura aproximadamente inferior em 5 % à dos Frades e Relíquia? Tanto os dois painéis menores da esquerda como os da direita têm medidas compatíveis com o seu possível funcionamento num políptico formado pelos dois maiores – interiores e fixos – e pelos dois pares de menores – exteriores e volantes – susceptíveis de serem fechados sobre a parte fixa. Mas porque não poderiam os quatro painéis menores ser iguais entre si? Poderia talvez dar-se o caso de os vários painéis terem sofrido cortes verticais posteriores à pintura. Mas a hipótese de cortes importantes é, como vamos ver, contrariada por um lado por razões que decorrem da própria lógica da cena representada, e por outro, de forma mais categórica ainda, pelo estudo científico dos painéis publicado em 1994.

Vejamos em primeiro lugar como a lógica da composição contraria a hipótese de cortes significativos. A aglomeração de figuras é, como já notámos, de tal ordem que não permite ver claramente qualquer fundo. O facto de as personagens situadas nos limites dos painéis se encontrarem cortadas é explicável pela própria concepção do conjunto sem background visível e, como veremos adiante, o que se pretende mostrar ou ocultar de cada uma delas não é deixado ao acaso. Note-se, para já, o número de figuras que apenas nos mostram a cor completa do seu vestuário através de pequenos fragmentos de mangas vermelhas, visíveis nos limites de ambos os painéis centrais e do painel dos Cavaleiros. Se os painéis não mantêm actualmente as suas dimensões de origem, deveremos falar em pequenos desbastes marginais de preferência a cortes, já que, como veremos, nenhum elemento potencialmente significante se parece ter perdido.

De resto, se quiséssemos explicar a representação parcial das figuras situadas nos limites através de eventuais cortes, teríamos de concluir que faltariam pedaços bastante grandes, e isto em cada um dos doze limites laterais dos painéis. Se, na nossa imaginação, completarmos as figuras incompletas, obteremos um conjunto de seis painéis alargado e improvável na lógica de conjunto que procuramos apontar.

Mas a desigualdade original das larguras dos painéis menores é confirmada também pelo exame a que se procedeu:

«Quanto à detecção de eventuais reduções das dimensões dos painéis, em altura ou largura, verificaram-se vestígios de cortes efectuados a serra ou plaina no lado esquerdo dos painéis dos Frades, do Infante e do Arcebispo, e no lado direito do painel da Relíquia, bem como no topo superior de todos os painéis. Porém, regista-se também nessas zonas a existência de bordos não pintados, comprovando que tais cortes não terão provocado uma redução importante dos suportes e não afectaram significativamente a integridade da superfície pintada» (I. Vandevivere e J. A. Seabra de Carvalho em Nuno Gonçalves – novos documentos, 1994).

Representando portanto a vermelho os quatro painéis que sofreram pequenos cortes laterais:

64,5
63,9
59,8
60,1
128,0
127,9
128,0
128,6
60,4
60,4
63,1
63,1

Se, como daqui se depreende, nenhum dos dois painéis mais estreitos (Pescadores e Cavaleiros) é candidato à hipótese de ter sofrido cortes laterais, por menores que tivessem sido, podemos concluir desde já que:

  1. O par Pescadores / Cavaleiros é, desde sempre, sensivelmente inferior em largura ao par Frades / Relíquia. Os pequenos cortes neste último par tiveram até o efeito de reduzir um pouco a diferença anteriormente existente, que pode ter suscitado alguma perplexidade.

  2. Os quatro painéis menores nunca tiveram, por consequência, larguras exactamente iguais à metade da largura de cada um dos dois painéis centrais.

A verificação de cortes apenas diminutos mantém as figuras limítrofes anatomicamente amputadas já na intenção original e, longe de diminuir o problema das larguras diferentes dos dois pares de menores, torna-o ainda mais evidente e difícil de ignorar. Os seis painéis parecem pois concebidos à partida como três pares distintos:

A conclusão a que chegamos é a seguinte:

A disposição correcta dos seis painéis foi concebida como problemática dos pontos de vista lógico e estético, e o seu autor, através da perspectiva das lajes e das larguras diferentes, duplicou as pistas para uma colocação que sabia fraca e insatisfatória, de modo a inicializar a charada.


NOTAS

1)  Painel dos três santos S. Vicente na iluminura A presença usual dos atributos identificativos de santos e profetas é passiva e meramente emblemática, não assumindo os próprios objectos um protagonismo activo no seio de cenas a descodificar, como parece desde logo ser o caso do livro, legível e ostensivamente exibido na direcção de uma das principais figuras da composição.

Dagoberto Markl (em Nuno Gonçalves – novos documentos, 1994) cita, a propósito da ausência de atributos, dois precedentes em que S. Vicente parece estar acompanhado unicamente de um livro:

«Não se pode ignorar que José de Figueiredo, o paladino da tese vicentista, não se preocupou com esta aparente lacuna iconográfica, mas apresentou um bom exemplo, o da iluminura de São Vicente no Livro de Horas de D. Duarte, onde o santo tem, como atributo, somente um livro. Poder-se-ia acrescentar outro exemplo, o da capela do Cardeal D. Jaime de Portugal em San Miniato-al-Monte onde figura S. Vicente (acompanhado por Santiago e Santo Eustáquio), da autoria de António Pollaiolo, só com um livro debaixo do braço, como no "Painel do Arcebispo"».

A afirmação parece-nos discutível, uma vez que, no primeiro caso, a singularidade do pouco característico livro emblemático se torna mais aceitável no contexto de outro livro, e no segundo, um exame mais detalhado mostra que esse isolamento de facto não se verifica, estando cada um dos três santos acompanhado de dois atributos.

Reinaldo dos Santos (1955) comete o mesmo erro em relação à representação de Florença, ao esquecer a simbólica palma do martírio em miniatura que o santo segura na mão direita:

«É certo que entre nós algumas imagens de S. Vicente ostentam o barco e os corvos, que segundo a lenda, conduziram o Santo de Valência, onde fora martirizado, ao cabo da costa de Portugal – Promontório Sacro – depois conhecido como cabo de S.Vicente. Mas esta iconografia, mais frequente no século XVI, reduzia-se no século XV à dalmática e evangeliário de diácono. Esta sobriedade iconográfica estava bem no gosto do pintor. Para citar um exemplo notável, e além disso ligado a Portugal, lembramos que é assim que S. Vicente é representado no retábulo dos Pollaiuolo, da capela do Cardeal de Portugal, em S. Miniato de Florença».
Na verdade, a nau e os corvos, que sobrevivem até na heráldica da cidade de Lisboa e na designação popular dessas aves como «vicentes», foram e continuam a ser um atributo por excelência do santo em Portugal, mas na iconografia medieval a palma e os instrumentos do martírio tinham um importante lugar de destaque, e teria resultado muito estranha, numa representação portuguesa, a ausência tanto da nau e dos corvos, como da própria palma, ainda que numa representação que se desejasse sóbria (como é o caso da palma miniaturizada de San Miniato).

O livro, muito mais que reduzido a uma presença emblemática para identificação (deficiente) de um santo, está literalmente assestado sobre o rosto de uma das figuras em presença, que nem sequer está ocupada em rezar, limita-se a «receber a lição», olha para o longe e para cima, numa direcção indeterminada, a meio caminho entre as duas mulheres presentes, mas claramente para além do livro, e volta-se mais para a mulher de vermelho que lhe estende a cauda do seu vestido do que para o suposto santo, recuado em relação a ambos. Como adiante se verá, tudo isto faz todo o sentido na aproximação ao políptico que procuramos expor nestas páginas, e nenhum na da «Veneração de S.Vicente» que ainda possui na actualidade um estatuto semi-oficial.

2)  O estudo científico dos painéis indica claramente que uma suposta repintura não teve lugar:

«A radiografia da cabeça do Santo no Painel do Infante (como no do Arcebispo) não apresenta sinais de qualquer modificação na execução pictural da sua fisionomia. O modo como se revela uma modificação desse tipo, através da documentação radiográfica, é aliás bem evidente no caso do personagem que, no mesmo painel, se situa entre o Santo e a figura do chapeirão» (I. Vandevivere e J. A. Seabra de Carvalho em Nuno Gonçalves – novos documentos, 1994).

3)  A designação de «milagres» poderia ter constituído no passado um modo popular de dar sentido a cenas vagamente místicas, que não sendo compreendidas de outro modo, se teriam tornado assim mais assimiláveis. Mas seria muito difícil aceitar uma tal confusão por parte dos autores das referências seis e setecentistas mais cultas aos milagres e suplícios do retábulo de S. Vicente, que a moderna ortodoxia aceita como provas cabais da permanência in situ dos painéis, embora nenhuma delas onde se proceda a alguma descrição diga remotamente respeito a algum dos seis, nem sequer aos maiores, apesar da sua óbvia centralidade, presença mais que provável de realeza histórica e intrigante concepção dual.