O CÓDICE DO VATICANO FraPesInfArcCavRel

No códice do Vaticano: Martyrium et gesta
No códice e no políptico

D. FERNANDO NO CÓDICE DO VATICANO
Biblioteca Apostólica Vaticana, Códice Latino 3634 (fl. Cvº)

Em cima: Desenho em grisalha num códice com o incipit «Martirium pariter et gesta magnifici ac potentis Infantis Domini Fernandi, magnifici ac potentissimi Regis Portugalie filii, apud Fez pro fidei zelo et ardore, et Christi amore» reproduzido em José Pijoán, Miniaturas españolas en manuscritos de la Biblioteca Vaticana, Escuela Española de Arqueología e Historia en Roma: Cuadernos de Trabajo, vol. 2, p. 12 (acedido em 26 de Agosto 2018). Em baixo: Comparação dos rostos no desenho do códice e na pintura do políptico.

O desenho constitui o frontispício de um pequeno códice em pergaminho (século XV, provável terceiro quartel; traduzido e estudado na edição crítica de António Manuel Ribeiro Rebelo, 2007) existente no Vaticano, apologético da santidade do infante mártir D. Fernando, onde figura a sua imagem visivelmente inspirada na do tríptico do Mosteiro da Batalha, provavelmente a mais antiga desse tipo em existência – uma representação icónica inspiradora de representações posteriores semelhantes – acompanhada da sua divisa e escudo de armas, igualmente patentes no seu túmulo.

No entanto, o desenho, mais sofisticado, foge à perpectiva frontal adoptada no tríptico e mostra a figura a três quartos, com um rosto fisionomicamente muito semelhante ao do grande políptico (rosto longilíneo, nariz longo e afilado, implantação da barba e sombreado definidor das maçãs do rosto idênticos), apoiando-se provavelmente ambas as representações do rosto num mesmo retrato, pintado ou desenhado, pré-existente ao códice e ao painel dos Cavaleiros do políptico, na posse de quem pode ter encomendado ambos.

No códice e no tríptico da Batalha Essa hipótese pode igualmente explicar a semelhança de aspecto e indumentária da figura de corpo inteiro do códice com a do tríptico da Batalha, até ao ponto de seguir o aspecto das cadeias de tornozelo que o infante segura, podendo ter sido desenhada a partir de esboço tomado in loco ou, mais improvavelmente, a partir de descrição, mas alterando a sua orientação, como se o desenhador procurasse fazer coincidir a perspectiva com a de outro retrato facial de D. Fernando que melhor lhe servisse de modelo para o rosto. Ou até – podemos ainda acrescentar – que tivesse simplesmente correspondido, no grande políptico de idêntica origem, ao desejo de colocar o cavaleiro de negro a olhar no sentido oposto ao dos seus três companheiros, de verde, vermelho e roxo, em preparação do seu movimento virtual para o outro lado do políptico, conforme a resolução da charada proposta exigia.

Note-se que, no desenho do códice, as armas do infante reproduzem com exactidão as representadas no seu túmulo, mas os ramos de roseira brava dispostos em três anéis entrelaçados onde se inscrevem as palavras «ben me plet» da sua divisa, formam um triângulo com orientação vertical inversa à do que figura no túmulo, pormenor que não sendo particularmente significativo, pode todavia indicar mais facilmente um desenho realizado segundo uma descrição ou de memória do que uma cópia directa e fiel a partir da pedra. Por outro lado, o que nos parece mais provável é que a inversão tenha simplesmente procurado um equilíbrio estético através de uma harmonização do formato da empresa com o do escudo.

A imagem revela um desenhador de boa qualidade, mostra o infante mártir a calcar aos pés três coroas que representam a carne, o mundo e o Diabo (caro, mundus, diabolus, nas legendas em latim), como convém a uma apologia hagiológica, e o códice integra-se sem dúvida no esforço desenvolvido em Roma para promover a sua beatificação, devendo-se muito provavelmente a iniciativa, exclusiva ou em concerto com a coroa portuguesa, de sua irmã, a duquesa de Borgonha. A sua influência diplomática, como co-governante de um dos potentados europeus mais influentes da sua época, era notável e foi exercida com frequência a favor da sua família portuguesa, nomeadamente dos seus sobrinhos, filhos do infante D. Pedro, e em particular, na esfera religiosa, da ascensão de um deles, o cardeal D. Jaime, ao purpurado, tendo estado igualmente na origem da capela funerária que lhe foi edificada na basílica de San Miniato-al-Monte em Florença.